domingo, 31 de maio de 2020

Crônicas da Cidade Pandêmica: Ghost Story

Fonte: Wattpad

Um espectro ronda o mundo - o espectro da Tristeza, com "T" maiúsculo mesmo. E nós, brasileiros, o vemos todo dia, a todo momento. Não me parece exagero dizer que ele permeia todas as nossas ações, e as nossas dores. O que é a raiva que sentimos, ao ver o presidente falar asneiras em plena TV? Não raiva, mas impotência: é a Tristeza a nos afundar em sua lama. O que é a sensação de vermos cada vez mais pessoas morrendo, e os empresários discutindo rebaertura ao invés de se reunirem e tentarem ajudar num isolamente? É a Tristeza novamente, disfarçada de ultraje, de raiva no fundo do peito.

Este fantasma que nos assombra, não está aí a pouco tempo: na verdade , se considerarmos o Brasil, ele sempre nos acompanhou, como uma doença crônica acompanha um enfermo. Arrisco dizer que a Tristeza está intríseca na nossa arte, na nossa comida, nas nossas danças... mesmo canções dos anos 80, ditas mais alegres, sempre carregam em si um quê de melancolia, não? Podemos pensar em canções mais alegres: axés, sambas, pagodes em geral. Mas eu penso que eles podem ser apenas uma froma de disfarçar a dor; é costume da alma mais angustiada tentar sublimar seus sofrimentos de alguma forma, e talvez assim seja com a sociedade também.

Como disse, essa Tristeza não é algo que seja novo. Contudo, como ela tem se espalhado nesses tempos! E não apenas pelo Covid, ao contrário, a Pandemia veio meramente como uma espécie de confirmação de nossas previsões mais pessimistas sobre o mundo. Toda a crise, a revolta, as dores e mortes que sentíamos, em nosso âmago, que viriam, aqui estão. De uma forma ou de outra, os temores se concretizaram.

Não foram, também, os resultados de eleições diversas ao redor do mundo que nos afetaram de maneira tão atroz, embora elas realmente não tenham ajudado. Não sou do grupo de pessoa sque diz que nosso presidente, o Idiota no Planalto, é o responsável pelos nosso males de alma: eu sei que ele é o sintoma final de uma sociedade extremamente doente e podre, que enxergou nele uma solução (ainda que torta) para conseguir uma mudança. E essa mudança veio, e era tão destrutiva quanto muitos de nós falaram. Não me importo se essas pessoa mudaram de ideia agora: a verdade já foi revelada, e suas almas já foram expostas. Olhemos para o que acontece neste momento: é isso que os eleitores de Bolsonaro queriam. Sentem-se mal agora, e dizem se arreepende,r porque efetivamente a mudança afetou a eles mesmos; mas nunca nos enganemos em pensar que eles adquiriram consciência.

Como lutar com essa assombração? Não posso dizer, pois creio que cada um tem sua forma própria de resistir. Também acredito que os que se sentem verdadeiramente assombrados, são poucos, e por isso devemos nos unir. Lá fora, veremos a maioria em uma dança macabra, rindo de horrores, abraçando demônios. Que nós, que acreditamos em algo melhor, algo maior, possamos dar as mãos e construir algo para a próxima geração. Sim, a próxima, porque esta nossa... creio que já não há muitas chances. 

quinta-feira, 28 de maio de 2020

Crônicas da Cidade Pandêmica: Un jour, je serais de retour prés de tois



Um dia, eu voltarei ao seu lado.

Não falo de uma pessoa em específico. Ou talvez esteja falando, sim; de um grupo de pessoas, essas mesmas, que você pensou, quando leu essa frase acima. Já deixamos muitas pessoas na beira da estrada da nossa vida, não? E algumas, faz muito tempo já. Não me refiro aqui, às pessoas que infelizmente tiveram de ir por força maior: e nesses dias cinzas, elas tem sido tantas! Falo das pessoas que abandonamos mesmo, seja porque achamos não ter escolha, seja porque tinhamos total liberdade e escolha, e decidimos por não seguir adiante ao lado daquele determinado indivíduo.

Isso é, infelizmente, muito normal, não? Seguimos em frente em busca de algo, uma evolução talvez, ou mesmo uma forma de entender melhor o mundo; e nem sequer nos percebemos dos que deixamos para trás. Um amigo de infância, talvez; às vezes, um colega de escola que foi particularmente importante para sua vida. Talvez mesmo um parente: quem não teve um primo ou tio/tia que lhe incentivou a seguir um determinado caminho (ou a explorar um hobbie específico), e com quem não mais conversamos, porque a vida nos levou para um outro lado.

E isso é algo que a sociedade tende a normatizar. É  evidente, dizem as vozes das ruas, que você vai conhecer uma série de pessoas, e que depois você vai sumir da vida delas. Faz parte do processo de crescimento. Você aprendeu o que tinha que aprender com elas, e depois seguiu seu rumo, a pessoa também, e assim é a vida. esses são os dados lançados para estes tipos de relações. Muito fácil, nos dias de hoje, coisificar as amizades, enjaular uma conversa sem pretensões maiores entre dois indivíduos, em uma relação de trocas, de perdas e ganhos. É o que nos manda o Capitalismo: o que importa é você, não o outro. Sugue o que tem sugar, depois siga em frente.

E com isso, cometemos o crime maior de uima alma, que é perder a ternura. Sim, pois quando se perde esse calor interior, as maiores barbaridades são perdoadas, em prol de um ganho que pode ou não ser físico, e que nos fim das contas não serve de nada, pois de que vale ganhar o mundo e perder a alma? Por isso, eu afirmo, contra a corrente, contra o que nos dizem as vozes das ruas: Não esqueçam dos seus amigos. Não esqueçam dos que lhes aquecem o coração. Deste texto, eu lhes grito amigos: Um dia estaremos juntos novamente, e riremos, e choraremos, e não esqueceremos. Nunca esqueceremos. 



terça-feira, 26 de maio de 2020

Crônicas da Cidade Pandêmica: Tempo de Monstros

Fonte: Luke Pearshall


"O Velho Mundo está morrendo, e o Novo luta para nascer; agora é o tempo de Monstros."

Essa frase acima é atribuída por Slajov Zizek à Antonio Gramsic, e foi supostamente escrita em meados dos anos 30, nas celas em que o grande filósofo italiano sofreu sua prisão por mais de 11 anos. É uma frase carregada, por certo; E mais do que buscar saber se foi realmente escrita por Gramsci, me parece que ganharemos mais buscando entender o quanto ela representa e significa em relação aos nossos tempos.

Estaríamos, afinal, em "Tempo de Monstros"?   As evidências apontam para que sim. Não estamos vendo agora, ao nosso redor, cada vez expressões de exaltações e abusos? Não ligamos a TV e observamos pasmos a celebração do que há de mais absurdo em pleno centro de poder no Brasil? Ou talvez nem mesmo somente aqui: de fato, os extremismos tem se acumulado ao redor do mundo com uma escalada assustadoramente familiar, posto que já vimos acontecer antes, em muitos "antes". Provavelmente em muitos "depois" também.

Contudo, também vemos uma variedade de ações boas acontecendo. Pessoas, anônimas, ajudando seus vizinhos; estadistas que se organizam e ajudam a população de determinados países (não o nosso, infelizmente), a superar a crise de saúde que vivemos. Não são obviamente, monstros, pelo menos não no aspecto que uma sociedade sã julgaria. São contudo, a minoria.

Pois a regra geral é a escuridão maior que a luaz, nesses dias sombrios. A regra geral é o horror: e por isso precisamos acreditar,precisamos lutar. Pois nada mais do que é bom, é certo nesses dias. Se vivemos em um mundo que a regra é a dor, a felicidade não virá enquanto esperamos , ou somente oramos, e olhamos pros césu indagando por que. Há que por a mão na massa, mesmo contra a corrente. Precisamos ser a luz que combate as trevas.

domingo, 24 de maio de 2020

Crônicas da Cidade Pandêmica: Os Detetives Selvagens


Eu disse no texto anterior que eu e minha esposa temos nos aprofundado em séries de detetives e investigações em geral. E nem precisa ser realmente um tipo específico de investigação: temos passeado pelos mais diversos estilos de séries, das argentinas às inglesas, cada uma com seu jeito próprio de mostrar os dramas e mistérios do mundo daqueles personagens.

A busca da causa do crime! E quem dera fosse tão fácil quanto o jogo de tabuleiro que temos. E quem dera os crimes fossem tão facilmente compreensíveis quanto o são em séries e filmes. Se bem que nem todas as ´series são assim; de uns tempos para cá, tem sido criadas muitas obras detetivescas que são um pouco mais densas, onde as coisas não são tão simples. Boas obras, em suma.

Mas eu dizia de nosso amor sobre coisas policiais, e de repente percebo que não é uma coisa que se resuma somente a nós dois. Se olharmos as séries favoritas de muitas pessoas que conhecemos, pelo menos no top 10 delas vai haver alguma série de investigação. Isso é muito, se você parar pra pensar na quantidade de shows sendo criados o tempo todo (bom, o tempo todo fora do nosso atual corona time). As pessoas querem séries policiais. Mas por que?

Minha opinião, é que nós buscamos a razão das coisas. A mente precisa que as coisas façam sentido; por que outro motivo temos medo do desconhecido? Mesmo o mais vil cidadão caminhando numa rua, ao ver uma pessoa falando uma linguagem que não entende, sente-se compelido, mesmo que por um segundo, a tentar entender o que aquela pessoa falou. A busca por entender as coisas está intríseca na mente humana...

... E nós vivemos tempos que não há explicação. Qual a razão lógica de tanto sofrimento? Tanta dor?  Buscamos dentro de nós, em religiões, em teorias sociológicas e psicológicas, e nada nos satisfaz idealmente. Sofrimento sem razão é um inferno em si próprio, pois indica que tudo que se passa não levará a nada.

Entao buscamos em histórias e representações, a força que precisamos para encontrar a ordem dentro de nossas próprias vidas. Os detetives na tela não estão investigando somente aquele corpo, aquele assassinato; estão investigando a nós. Eles são o símbolo em nossa mente para tentar entender esse grande mistério que é a vida. Porque, além de compreender, o homem também de símbolos para navegar este mundo; e dentro de nós, os detetives primordiais precisam, tão somente, de um avatar.

sexta-feira, 22 de maio de 2020

Crônicas da Cidade Pandêmica: O sol se põe vermelho, como o sangue, e completamente despercebido




(Agradecimentos à amiga Tamyris pela frase que nos deu o título e a foto de hoje)

Existe uma certa libertação em não se ver mais a TV por um tempo, especialmente nesses dias tão complicados. era algo que eu fazia de uma forma um tanto religiosa: ligar a Tv em algum momento do dia, buscando entender quais os próximos passos a serem evitados. Aliás, isso é algo que tem definido nossos dias, não planejar fazer algo, e sim evitar fazer algo. Uma vida baseada em negações.

Mas eu falava da TV, e de fato temos feito muito isso aqui em casa, simplesmente não ver mais as notícias. Algumas pessoas poderiam acusar-nos de estar tentando tapar o sol com a peneira, afinal, de que adiantat evitar saber de uma determinada coisa, se ela nos cerca em toda sas interações ao redor? Contudo, é por isso mesmo que temos evitado os telejornais; simplesmente, as notícias são tão intensas, que acabam chegando ao nosso conhecimento de uma forma ou de outra. Impossível seria não chegarem, não é mesmo?

O que temos feito então? Ah, uma série de coisas. Compramos um jogo de tabuleiro de  detetive, e jogamos ele todo Sábado. Aline faz duas xícaras de capuccino, botamos um jazz misterioso, e jogamos nosso joguinho (Soctland Yard:Máquina do Tempo, para os interessados). Depois disso, assistimos alguma série ou filme policial: temos nos absorvido em séries com investigações esses dias, não sei dizer por que.

Já em nossas atividades sozinhos, Aline de vez em quando assiste uma série no Netflix que lhe interesse (em geral algo em espanhol); eu costumo ler algo ou jogar um jogo de aventura no velho laptop. Tenho recuperado meu prazer nos velhos point-and-click possíveis de se jogar um em pobre notebook que já foi molhado, jogado no chão, e que perdeu as teclas de digitação. Buscamos fazer coisas sozinhos, para visitar nossas mentes em paz. Eu acho que se você não der tempo a sua parceira para ela ser ela mesma, você está perdendo a melhor coisa de se ter alguém consigo, que são as descobertas do dia-a-dia.

Além disso tudo, gostamos de sentar e ouvir músicas, e pensar... por vezes, a musica guia nossos pensamentos, e posso ver minha esposa olhando para dentro de si, lembrado algo bom, talvez, ou mesmo apenas sentindo o ritmo. Quanto a mim, também faço isso, mas sempre me vejo olhando para a noite (ou quase noite) lá fora, e vejo que ignorei o céu por tanto tempo, que ele me parece algo novo agora, toda vez que o observo nesta quarentena. E com a música tocando ao meu redor, me ponho a observar lá fora, e sonho com a pintura do que vejo, e que jamais existirá.

terça-feira, 19 de maio de 2020

Crônicas da Cidade Pandêmica: ...but the future refused to change.

Sadness, de Daniel Castonguay

Uma coisa que pouca gente fala é da esperança errada das pessoas. É um tema espinhoso, é claro: ninguém quer ouvir falar que suas esperanças de uma vida normal, pós-pandemia, estão erradas, que o mundo de antes acabou. Ou talvez seja difícil, para muitos, tentar entender um mundo que as pessoas ainda são fundamentalmente as mesmas , depois de tanta tragédia, tanta dor.

Essas pessoas são boas, porque acreditam na humanidade,  e no aprendizado por erros. Não uma crença inválida, por certo. As tragédias realmente tendem a mudar uma pessoa, fazê-la buscar entender coisas que talvez tenha relegado ao esquecimento em algum momento da vida. Mas quem disse que a mudança tem que ser positiva? E quem disse que é realmente uma mudança?

Neste momento, existem muitas pessoas que estão se descobrindo, para o bem ou para o mal. E não acredito que o número de mudanças positivas é realmente tão grande quanto esperamos. Na verdade, acho que estamos vendo, nas ruas e na internet, a verdadeira face de tantas, tantas pessoas... e essa revelação não vai se enterrar novamente. A caixa de Pandora se abriu; ou talvez tenha se aberto a muito tempo atrás, em 2018, nas eleições. Talvez até antes. O fato é que, essas revelações ruins são muitas. Existem muitas pessoas que se comprazem do sofrimento de outros, celebram a dor. Usam essa dor para justificar seus atos terríveis.

Também existem as pessoas que se revelam, na escuridão, como fundamentalmente boas. Essas são poucas. Não, não adianta puxar pela memória a quantidade de  pessoas boas que você lembrou agora. Só pare e pense: o mundo seria assim se a maioria das pessoas fossem boas? Pense e observe. Da observação vem a iluminação; mesmo que para coisas atrozes como estas.

A única coisa a se fazer, ao invés de esperar que as pessoas magicamente tornem-se melhores, é trabalhar do nosso lado para tentar pôr uma semente de bondade nessa terra cada vez mais infértil. Um trabalhao hérculeo, e na verdade não sei dizer se vale a pena, se considerarmos as chances de sucesso. No entanto, é preciso realizá-lo. Se não o fizermos, quem fará?


domingo, 17 de maio de 2020

Crônicas da Cidade Pandêmica: O sabor da vida



Um dos meus hobbies favoritos nesta vida é cozinhar. Não é algo que tenha vindo desde sempre; confesso que. no começo eu era muito mais um gourmet que um projeto de chef. O costume de cozinhar veio com a necessidade: me mudei de Belém para São Paulo em 2015 e um pouco antes, já sabendo que iria precisar me virar, resolvi aventurar na cozinha um pouco. Cozinhei coisas básicas para meus pais e irmãos, e depois somente para mim, e pro fim deleito minha esposa com refeições vegetarianas que estou sempre aprendendo aqui ou ali.

Sim, posso dizer que namorar e casar com Aline foram grandes responsáveis pelo meu desenvolvimento culinário. Uma das piores coisas que se pode ter, quando estamos em um relacionamento com um vegetariano, é a absoluta sensação de isolamento deles em restaurantes regulares, como se eles não merecesse serviço tal qual os clientes "carnívoros". Mais de uma vez me exasperei em ir a um lugar e ver que a opção para minha companheira era, quando muito, uma salada e um ovo frito.

Foi então que comecei a aventura de aprender a cozinhar melhor. E que aventura tem sido! Livros, vídeos, sugestões... tudo é uma forma de aprimorar as habilidades. A pobreza também, se quer saber. Nada como não ter o ingrediente extao de uma determinada receita, para poder descobrir novos sabores e novas combinações acessíveis a um bolso mais magro que suas ambições.E assim fui cozinhandoi vários pratos e versões vegetarianas de pratos famosos para minha amada esposa... que ou adorou todos, ou me ama tanto que o sentimento acaba temperando os pratos. Mas acho que é mais a primeira opção; temos muitas memórias e momentos bonitos ao redor de cozinhar e comer juntos.

Nesta pandemia então, cozinhar tem sido um salvador da pátria, por mais de um motivo. Primeiro, é claro que as saídas para restaurantes cessaram por completo (não que fossem frequentes antes, lembre-se do bolso magro). A chiqueza da comida, portanto, vem do que conseguimos cozinhar ali: um strogonoff requintado, uma pizza caseira da boa, doces e mais doces... tudo tomando o cuidado de não tornar as coisas MUITO gordas. São tempos de quase sempre ficar parado em casa, afinal.

O segundo motivo, e creio que o mais forte para meu amor pela cozinha, são as lembranças. Como disse ali em cima, tenho muitas memórias boas de culinária com minha esposa, mas o pensamento voa longe, muitas vezes, quando consigo repetir um tempero que não provava desde a infância... ou quando relaizo um prato que está igual ao que eu comia em almoços no passado, com meus irmãos e meus pais, enquanto pensava nas provas de escola regular... Dizem que a música é a forma mais pura de arte: gostaria de usar aqui a culinária como um exemplo maior ou igual, pois ambas usam nossos sentidos mais primários, para causar emoção e acalantar um coração torturado pela dura realidade. 

sábado, 16 de maio de 2020

Visões do Futuro: Lázaro (2)





A seguir, uma visão do futuro pós-pandemia. Não é otimista. Estudar a natureza huamna através da História tornou o otimismo em mudanças tão essenciais, algo fantasioso demais para este humilde professor e escriba.
Quem quiser ver a parte 1 desta história, favor ler "Lázaro", nos arquivos deste blog. 


Ontem reabriram a capelinha aqui do cemitério São Judas. Eu já esperava isso, depois que toda a pandemia, passasse mas na verdade achava que iam fazer isso muito antes do que aconteceu. No fim, foram mais de três meses até poderem reabrir tudo, e mesmo assim as pessoas não frequentam mais ali como faziam antes. Acho que os enterros rápidos acabaram meio que virando rotina entre todo mundo. Espero que não por muito tempo, me sinto mal com isso. Parece um desrespeito desnecessário com o corpo agora. Por outro lado, quem sou eu pra dizer alguma coisa?

A maior demora foi conseguirem a chave da capelinha. Ela tinha ficado, por algum motivo, com o Tobias, mas ele morreu logo pelo pico da doença em meados de Junho, Julho. Tinha levado a chave para casa, e aí depois da morte dele alguém mandou todas as coisas que ele tinha numa caixa, de volta para Recife, com a família dele. Tiveram que entrar em contato, a porta da capelinha era muito antiga, difícil mandar fazer uma cópia a essa alturas das coisas. Alguém sugeriu arrombar e depois consertar a porta: e cadê a coragem pra isso? Mesmo em tempos que nem esses, ainda se tem temor a Deus na terra. Na verdade, acho que até mais do que antes, se duvidar.
Tobias foi o primeiro, mas perdi muitos colegas de profissão nos dias cinzentos da pandemia. Foram bem uns 3; 4, se contar o Mateus, que se demitiu agoniado, com medo de ser o próximo a falecer. 

Saiu dizendo que o cemitério era amaldiçoado, que todo mundo que tava ali ia partir em breve. Eu não culpo ele; naqueles dias, as coisas estavam parecendo todas carregadas de maldição mesmo. Até eu fiquei doente, uma pessoa que não se lembrava da última vez que tinha gripado. Pensei que não ia conseguir sair daquela; estava fraco demais para qualquer coisa, 7 dias acamado, delirando em febre. Minha esposa deixava a comida na porta do quarto e chorava da sala, baixinho, mas eu ouvia. No alto da noite, eu vi o rosto de minha mãe no escuro; senti a rpesença de meu pai; ouvi a voz de meu filho, que foi embora daqui ainda pequenino, sem conhecer direito esse vale de lágrimas.
No fim, não foi dessa vez. E voltei para o trabalho algum tempo depois, até hoje com o peito um pouco pior, como se faltasse um pedaço do meu fôlego nas lidas do dia. Quando eu voltei, as coisas ainda estavam brabas, mais ou menos 50 enterros por dia. Mas estavam melhores que quando tive a folga forçada, quando estávamos fazendo 75 enterros por dia. Normalmente eram 20, 30 no máximo. 

Difícil dizer que eram bons tempos : morte nunca é bom (nem é ruim: simplesmente é). Mas com certeza eram momentos menos pesados, em todos os aspectos.
Agora, quando saímos, a máscara é item obrigatório. A doença ainda não sumiu, ainda está por aí, em algum lugar. Pelo menos é assim que está a nossa cabeça; todos nos olhamos com medo ainda, as mortes ainda frescas em nossa mente. Muitas propagandas dizendo que o pior já passou, que o mundo normal está de volta, mas aonde? Não vejo em lugar nenhum. Muito menos nos ônibus, onde cada tossida é encarada com medo e raiva.

Chego no cemitério e os enterros são rápidos, ainda. Mais que as vidas, a doença matou o coração das pessoas, e botou medo no lugar. Eles vem, olham rapido, pedem pra gente enterrar logo, o quanto antes melhor. Não todos, mas um bom número, que me faz pensar, lembrar que eu via algumas pessoas no ônibus, quando eu voltava do trabalho naquelas dias doentes, dizendo que agora o mundo ia ficar mais gentil, mais humano. Sinto vontade de rir, mas não consigo. Acho que em parte, eles estão certos mesmo: o que que tem de mais humano que esse medo assim, além da razão, além do amor?

Quando isso acontece, restou para nós tentar dar um respeito pros corpos. Então enterramos logo, e paramos um pouco depois do serviço concluído. E ninguém sabe nem nós contaremos nunca, mas eu sei que estamos tentando pensar em uma coisa boa, no coração. Não palavras, só uma imagem às vezes, ou um sentimento bom, que às vezes é melhor que um monte de palavras né?

O mundo não acabou, ainda estamos aqui. Eu e quem sobrou aqui no São Judas. Tem gente que tem medo de nós, outros que chamam a gente de herói, porque aguentamos o tranco mais duro do corona. Eu não sei dizer quem está certo. Tudo que sei é que, quando durmo à noite, sonho com este espaço todo aqui, sem covas nem mortos, só as árvores se espalhando ao longe, e um verde sem fim balançado pelo vento de uma tarde quente. E sei que isso deve querer dizer algo. Mas não sei exatamente o que.

quinta-feira, 14 de maio de 2020

Crônicas da Cidade Pandêmica: I am the Cheese



Então, hoje eu fui buscar um queijo no portão do condomínio. Nada muito peculiar: por causa dos mercados operando com baixa rotatividade de produtos (afinal, a pandemia não é exatamente um grande impulsionador de negócios). Então, alguns  vendedores entram em contato com os síndicos de condomínios, na esperança de vender produtos para os moradores. Muitos conseguem: tenho visto anúncios de horti-fruti, máscaras e até mesmo produtos de limpeza, tudo vendido perto da área de carga e descarga.

Digo vendido, mas na verdade é mais entregue - o carro do vendedor entra no condomínio, abre seu porta-malas, e apressadamente vai entregando e recebendo o pagamento de seu produto das mãos igualmene apressadas dos condôminos. Não tínhamos comprado nada assim anteriormente, somente visto os avisos dados pela síndica; mas dessa vez, sentimos a vontade de comprar um bom queijo, e aventuramos encomendar e ir buscar no dia estipulado.

Eis que chegou o dia de buscar o queijo. Como de costume, me preparei para a saída: camisa, calça jeans, sapatos, máscara na cara. Me despedi de minha esposa com um beijo de olhares, e desci pelo elevador. Quando chego no portão encontro o que não queria: uma fila. Aparentemente, o vendedor se atrapalhou um pouco, e foi necessário organizar os clientes nessa fila.

Foi quando

a ansiedade

bateu

então comecei a contar de um a 10, mas eu estava nervosos, então eu basicamente contava até 3, e acrescentava mil, porque se você contar com mil é mais ou menos o tempo de um segundo e lá estava eu 1 mil 2 mil 3 mil, e entre cada um de nós havia espaço de mais de 3 braços, e nem eramos tantos assim mas tudo o que eu pensava era, estou aqui embaixo e queria estar lá em cima, e se ess apessoa ali da frente tem covid, como eu fico? O que eu faço? meu Deus por que tanta demora, 1 mil 2 mil 3 mil, e bem nessa hora entraram várias pessoas pelo portão dos pedestres, e passaram próximo a mim, e meu Deus e se essas pessoas tem Covid? 1 mil 2 mil 3 mil, e então andaram mais duas pessoas e a fila anodu, e lá na frente um senhor de idade tirou a máscara que usava pra provar um pedaço de queijo, que droga é essa, melhor nem usar então né amigo? 1 mil 2 mil 3 mil, finalmente chegou minha vez e o vendedor se desculpou mas não tinha trazido o pão de queijo e o salame que eu tinha encomendado, pode ser lombo? eu falei sim, por favor, me dê logo, e ele, se quiser eu trago o pão de queijo na sexta feira, e eu disse, não por favor, só me dê um biscoito doce, porque minha esposa adora doces, e me peguei pensando e se eu ficar doente aqui? E se ela ficar sozinha em casa? lembrei de tantos casais separados, e nesse momento o pensamento foi, DEUS NÂO QUERO MORRER POR CAUSA DE UM QUEIJO! Finalmente, peguei o queijo provolone, o lombo e o biscoito de goiabada que eu comprei, e zarpei para casa

Diminuindo

por fim

meu ritmo.

Cheguei em casa exausto, como se tivesse corrido uma maratona. entrei em casa, me despi tal qual tivese vindo de um lugar radiotivo, enquanto minha esposa apreensiva perguntava:

- Está tudo bem?

- Mais ou menos, só preciso tirar essa roupa e ir tomar banho.

Foi o que fiz, e ligando o chuveiro quente, lavei o corpo da adrenalina e me senti boiando, feliz, na segurança do lar.

segunda-feira, 11 de maio de 2020

Crônicas da Cidade Pandêmica: A comentarista ao lado



Esses dias, você vai mexendo na TV e fatalmente não tem mais nada passando, ou pelo menos nada que você queira realmente assistir. Reprise de novela? Passo. Série sobre as pandemis na história? Interessante, mas estou buscando me desligar um pouco, não me informar sobre as desgraças. E que tal o telejornal? Misericórdia, agora não!

Assim foi neste Domingo passado: plena 21:30 da noite e lá estávamos nós, eu e minha querida esposa Aline, jogados no sofá em completa derrota, zapeando pela Tv em busca de algo que pudesse nos distrair um pouco antes de dormir. Isso aliás, é algo que eu recomendo muito: nunca vá deitar com a cabeça pensando em problemas do mundo, ainda mais nos dias pandêmicos que vivemos. Buscar uma besteira pra aliviar a mente é algo essencial para sua sobrevivência psicológica.

Pois assim estávamos, quando de repente me vi parado num canal que passava a lendária partida Corinthians X Santos de 1974, o último clássico que Pelé jogou, onde o Santos perdeu de 1 a 0, gol de Rivelino. Surpresos com meu conhecimento a respeito? Pois aprendi tudo ontem mesmo: os comentaristas do programa (chamado, a saber, Mesa Redonda, na Gazeta) fizeram o favor de me informar diversas vezes a respeito. Por que parei ali naquele canal, não sei dizer, até porque eu nunca fui um fissurado em futebol. Ao contrário, eu costumo evitar partidas de futebol na TV, elas me causam um tédio sem fim.

O que teria feito eu parar naquele canal, e assistir os melhores momentos daquela partida específica? Talvez a magia do futebol-arte de Pelé e Rivelino se degladiando ali, naquelas imagens de colorido derretido dos anos 70?  Não sei se um dia saberei, talvez seja um dos grandes mistérios que carregarei pelos tempos, ou pelo menos até a próxima coisa que tomará minha mente. O que sei é que em dado momento, houve um impedimento na partida e eu comentei, do alto da minha ignorância, o que eu achava que tinha acontecido ali (completamente equivocado, diga-se). Foi quando ouvi a voz ao meu lado dizer:

- Não foi nada disso. Impedimento é quando o jogador chuta a bola pro outro jogador no campo de ataque, e naquele momento não tem um jogador do time oposto na mesma linha.

- O que?

- É isso que é impedimento, uai - ela disse, e concentrou de novo no jogo.

Fiquei, confesso estupefato: não esperava que Aline soubesse tanto assim de futebol! Perguntei como ela soube disso, e aí fiquei sabendo que por assistir tantos jogos com meu cunhado, ela acabou pegando algumas regras de cabeça; "pouca coisa", ela disse, meio envergonhada; e eu com aquele misto de surpresa e orgulho característicos de quando aprendemos algo bom que nem imaginávamos sobre quem amamos

Continuamos assistindo, e pasmem, nos divertindo muito, quando de repente alguém solta um passe terrivelmente mambebe, e Aline diz:

- Que passe medíocre!

Aí meu amigos, vieram os risos, e a felicidade de dividir aquele momento com minha esposa. Os sorrisos não eram de zombaria; antes, eram de admiração por ela, pelas profundiades que ela tem em si, as quais eu quase nada explorei ainda. Meu riso era o dos sortudos, dos abençoados, pois eu tenho tanto tempo ainda para aprender sobre ela, e saber o que mais ela pode comentar, e risos a darmos com jogos de futebol antigos, e vídeos aleatórios, e séries velhas e novas.....  tudo isso aqui, em minha esposa: eis a maior aventura que eu já tive o prazer de viver, que continuo vivendo, e que viverei muitos anos mais.

domingo, 10 de maio de 2020

Crônicas da Cidade Pandêmica: Someday, you will return



Você se lembra da última vez que saiu de casa sem apreensão do Covid-19?

Minha quarentena começou dia 7 de março, e não tenho saído de casa desde o dia 30 do mesmo mês. Muita tensão nisso; minha esposa e eu ficamos preocupados demais, tensos demais com a morte iminente no ar. É uma sensação difícil de explicar, realmente. É como se, nas sombras, houvesse um predador observando cada passo que você dava, cada deslize. Mesmo naqueles dias (que agora sabemos , era apenas o começo), sentíamos isso bem forte. As pessoas nas ruas, que ainda eram muitas, pareciam como que uma paródia de cotidiano comum: seu andar despreocupado era desmentido pelas faces tensas, as máscaras firmes no rosto, as lojas ao redor fechadas.

Alguns dias se passaram, e ficamos observando estupefatos os avanços da doença, como isso ia mudando aos poucos as coisas ao nosso redor. E no entanto ainda haviam ruas com festas perto de nós: ao longe, ouvíamos a música forte chegando, as risadas, luzes. Era a última dança, ou talvez apenas um grupo de pessoas que não acreditasse na gravidade da situação. Num país onde o próprio presidente se recusa a querer compreender o quão sério tudo se encontra, infelizmente não seria de se estranhar essa mesma postura entre civis.

Então, veio o silêncio. É claro, não em todo lugar. Ainda lemos sobre festas e "pancadões" em alguns lugares de Sampa, pessoas abençoadas por não terem sido infectdas ainda. Mas aqui perto de casa,o silênco tem sido frequente. E nao precisamos parar pra pensar muito o porquê, nós sabemos. Não foi a polícia, não foi a conscientização pela TV: Foi o Covid. Aprendizado pela dor.

 E assim estamos nesses dias cinzentos. Mas às vezes, olhando da janela, conseguimos ver o sol de uma maneira peculiar, e olhamos as árvores mais verdes, os pássarosque cantam e não ouvíamos antes. E isso nos faz lembrar dos tempos que íamos em parques, e planejávamos viagens com a família, ríamos juntos de besteiras. Lembramos dos lugares que fomos, e das emoções que sentimos. Das pessoas que aquecem nosso coração, e estão longe, longe de nós.

Algum dia iremos voltar lá, naquele lugar especial, com aquela(s) pessoa(s) que amamos. E quando formos, não será com medo e apreensão, mas sim com amor e vitória, ganhadores que somos desse grande presente que nos foi dado, chamado VIDA.

sexta-feira, 8 de maio de 2020

Crônicas da Cidade Pandêmica: One day, the sadness will end


E inevitavelmente, as lágrimas vieram. Não por algo específico, que se diga; apenas, o modo como o mundo está seguindo , se não nos assusta ou nos inflama de ira, certamente nos deixa pra baixo, sofridos. Nesse momento, cabe sentar no sofá e pensar na vida, olhar par ao teto, sentir a tristeza. Talve agarrar o gato mais próximo de você e fazer um carinho - gatos saõ um excelente recurso nesse momento.

Não é possível ser feliz o tempo todo, mesmo no melhor dos climas. Em um ambiente de morte e desespero, portanto, é quase impossível, para não dizer até um pouco isolacionista, querer somente sorrisos em momentos de dor. Acho mesmo, que é algo não aconselhável: as lágrimas vem como bálsamos de certa forma, curam o machucado de dentro do peito.

E enquanto choramos, sentimos a intensidade da dor, a força de toda essa tristeza, que parece não ter fim, como dizia Tom Jobim. E é verdade: quando estamos no mar azul do sofrimento, ele parece não ter fim, nunca. nadamos e nadamos, sem poder entender como chegamos ali, ou o que podemos fazer para sair, voltar para casa, ao calor do abraço dos entes queridos. O conforto da segurança.

É nesse momento que muitos de nós se perdem, e se deixam afogar neste mar. E não vou mentir para vocês, é algo com que muitas vezes me defronto. Além de ser mais fácil (é cansativo nadar contra a maré), é tão familiar. Quanto mais você cai nestas águas traiçoeiras, mais você se familiariza com os movimentos dela, com as formas de arrastá-lo de um lado para o outro... e acaba sendo uma espécie de refugio, por mais estranho que pareça. É mais fácil sentir uma dor sem nome do que entender de onde ela vem; de fato, é bem mais prático pelo menos.

Nessas horas, tal qual náufragos, não podemos esperar um resgate de um barco gigantesco a nos procurar. É necessário nos agarrarmos nas madeirinhas boiando, buscar os botes salva-vidas. Falando sem rodeios, este salvadores são os pequenos momentos de felicidade que aparecem: um sorriso após uma piada sem-graça (minha especialidade para fazer minha esposa sorrir); uma comida bem feita e bem comida; uma música que traga boas memórias. A maior luta de nossos dias atuais é buscar esses momentos, mas acho que mais complicado -e ainda mais necessário - é podermos parar e pensar, por Deus, se isso não é bom, não sei o que é.

Um dia, a tristeza terminará de vez. Até lá, é segurar nas madeirinhas boiando de felicidade, e torcer para a chuva passar e voltarmos para o porto, para casa, e tomarmos uma boa cerveja com os amigos e contar as histórias de como chegamos até aquele momento.






quarta-feira, 6 de maio de 2020

Crônicas da Cidade Pandêmica: Gente merece existir em prosa


Recentemente eu vi no facebook um link chamado "Inumeráveis" e fiquei tocado pelo que ele dizia: trata-se de um programa que mostra os nomes por trás dos números do COVID-19. As pessoas que se foram, tristemente, fora desse vale de lágrimas cada vez mais intensas.

Na verdade, eu acho que tocado é uma palavra muito fraca para o que eu senti. Neste momento, tendo o site em uma aba aberta ao lado deste singelo blog, eu me sinto... sem palavras. A sensação que me vem ao ler ali é somente possível de descrever quando uso imagens; um vendaval correndo solene  pelo campo em silêncio. Sem pássaros, sem sons, somente o vento a soprar.

Eu li esse site bastante. Há tantos nomes, é muito difícil seguir todos. Há muitos sonhos ali, interompidos, sonhos novos e antigos. Não sejamos aqui como o cruel inimigo no poder, que menospreza os mais velhos e os sacrifica abertamente ao Deus Mercado:  todos podem sonhar, idosos e jovens. E todos tiveram seus sonhos, suas vidas, ceifadas cruelmente, antes da hora, antes do combinado.

Penso neles, essa noite. E em Flávio Migliaccio, vítima não da Covid mas desses tempos péssimos. Em tantas pessoas, sofrendo sem leitos, enquanto idiotas furam quarentenas só para fazer festas e curtir a vida. Enquanto o Presidente Bolsonaro comemora tal qual uma besta fera em frente ao Palácio do Planalto, o apoio de imbecis iguais a ele, enquanto as pessoas no país morrem, sem ninguém para enxugar suas lágrimas finais, porque nem chegar perto de nossos moribundos podemos.   

Todas essas pessoas, todas. Agora são apenas memórias nas mentes de seus entes queridos, e de quem os respeitava e amava. Nunca se morre enquanto não esquecermos o nome da pessoa: que elas vivam então, se não para sempre, um pouco mais, e que esse site ajude-nos a mantê-las vivas, e fortes. Que elas nos ajudem a superar essa noite densa. Porque é tudo tão escuro, meu Deus. Tão escuro. Precisamos de um pouco de luz aqui.







segunda-feira, 4 de maio de 2020

Crônicas da Cidade Pandêmica: Nostos

Fonte: https://rafaelneko.tumblr.com/post/55140600217/sekai-ninja-sen-jiraiya-fanart

Não sei se vocês sabem, mas a rede Bandeirantes, no alto de sua sabedoria ou talvez apenas buscando cobrir um horário um pouco vazio nesses dias pandêmicos e cinzas, resolveu voltar a exibir  Jaspion, Jiraya e Changeman, nomes que eu tenho certeza que alguns leitores deste blog abandonado só ouviram falar ao longe, por alto, talvez quando um irmão mais velho (ou mesmo um pai, vai saber) citava saudoso os programas que gostava de ver quando jovem.

Eu entendo, é claro: o tempo, dizia Cazuza, não pára, e os programas que muitos tem como queridos de suas infâncias são muitas vezes radicalmente diferentes do que fãs de tokusatu (O nome dessas séries cheia de japoneses fantasiados pulando de um lado pro outro, para quem não sabe). Veja você, a minha esposa tem um conhecimento enciclopédico dos desenhos e programas infantis da TV Cultura durante todos os anos 90, às vezes lembrando com carinho coisas que eu nem sequer me lembro de que existiam - e ela só tem dois anos a menos que eu! Se duas pessoas da mesma geração conseguem ter uma diferença tão grande de nostalgia com programs infantis, imagino que esse abismo seja ainda maior entre gerações bem diferentes. 

Ainda assim, creio que todos vão entender o que é sentar em frente à TV e voltar no tempo. Sim, prezados e prezadas, porque é isso que aconteceu hoje quando finalmente revi essas séries, sentado na cama, tomando café com a minha esposa ao lado. Minto, talvez tenha sido melhor que antes: agora eu tinha uma companhia com quem comentar, sorrir e brincar a respeito da tosquice rolando aberta nas séries, o que tornou tudo ainda mais especial. Cabelos mullet,(d)efeitos especiais, monstros de borracha... Eram séries infantis, claro.Mais que realismo, eu creio que a buscar era mostrar um pouco de aventura e fantasia para as crianças japonesas, com as brasileiras por tabela   

Talvez por isso elas sejam até hoje tão charmosas. O ar é meio de fábula: há sempre uma história que termina dentro do próprio episódio, e apresenta uma moral ao fim. O herói sempre vence - mas nem sempre sua vitória é necessariamente doce, ou todos necessaiamente terminam felizes. Mais do que esconder as coisas ruins de sua audiência , Jiraya, Jaspion e outros mostram-nas de uma forma que ele possa entender, e eu acho que isso é a maior forma de respeito possível com um público infanto-juvenil. 

É esse tom que me faz sentar ainda hoje e assistir, é claro; mas confesso que uma grande parte de mim também assiste, porque quer reviver por uns poucos momentos, as glórias de ser uma criança e não ter que me preocupar com tantas mortes, tanto medo e terror. Por breves 20, 40 minutos, sou novamente um pequeno nerd olhando atento para a tela, acreditando nos heróis que ali estavam, e aprendendo como é que se poderia, afinal, construir um mundo mais forte, justo,  e amável.

sábado, 2 de maio de 2020

Retratos na Cidade Pandêmica: Lázaro

Fonte: paintingvalley.com

"Esses dias um político desses falou que os caixões do corona estavam vazios, que a gente estava enterrando sem corpo dentro só pra aumentar os números lá nas estatísticas e tudo mais. Então a última família que veio por aqui nos forçou a abrir tudo na frente deles, mesmo que fosse contra o regulamento. Tentei falar que não era uma boa ideia, além da doença, o corpo tinha passado um tempo sem preservação, já estava avançado o estado.... não teve jeito, um deles até me ameaçou, disse que se eu não abrisse ia ter que ser ele a fazer isso, e eu não ia gostar disso. Não gostei do tom dele, mas achei melhor fazer tudo logo, terminar com isso, para poder seguir com os outros corpos ali. Haviam muitos naquele dia. Esses dias, sempre tem muitos.

Então, abrimos tudo e o olhar da moça, acho que era filha do falecido, foi terrível, mas eu já esperava. Porque quando uma pessoa morre, você se esforça para guardar na cabeça a última imagem que tinha dela, que provavelmente é algo feliz, ou sei lá, um momento de força dela contra alguma coisa. Normalmente a doença. Mas quando a gente abriu o caixão, a pessoa viu a verdade. Não só que era mesmo o pai dela ali, mas o que a morte fez com aquele corpo, sabe, toda a decadência. Então vieram as lágrimas, e o mesmo homem que me ameaçou disse que ia processar o cemitério por descaso com os parentes. Não entendi, mas também deixei de me importar com essas coisas a muito tempo. Desde antes da pandemia mesmo, eu acho. Não tem espaço para coisas mesquinhas para quem trabalha com a morte.

Nem sempre é assim, claro. Tem o pessoal que entende e respeita a situação, e olha só de longe, tristes. Dá vontade de dar uma palavra de consolo, mas não sei o que dizer. Nunca sei o que dizer. Quando eu comecei nesse ramo, eu tinha um caderninho com umas frases de consolo  para as famílias, mas com o tempo eu percebi que não adiantava nada. A morte é real demais para ser resumida em umas palavras; a sensação de perda é forte demais para falar qualquer coisa. Acho que deve ser por isso que tanta gente nega que aconteceu, ou vai pra farra depois de uma coisa dessas. É melhor fugir do fim que encarar, né? Nao julgo. Deixei de julgar há muito, muito tempo.

Apesar disso, tem sempre a dança toda da despedida, né, os ritos que a gente tem que fazer para começar a superar. Mas nem isso tá podendo acontecer, sabe, mesmo os corpos que são suspeita de Corona a gente tem que enterrar com todos os cuidados, até mesmo a capelinha do cemitério teve que fechar, pra evitar aglomeração. E lá vem cinco pessoas enterrar o morto deles, e nem podem olhar por corpo direito, nem podem chorar em cima do corpo. Pra eles deve ser assim como se a pessoa tivesse simplesmente sofrido e sumido do mundo, virado vento.

Olho para eles e penso em como minha família ia sofrer com o meu caso, com a minha partida desse mundo. Não, falar a verdade para você, nem penso nisso não. Só organizo as coisas, e faço as covas, tranquilo. Tem que ter tranquilidade nessas horas, até para tentar passar algum conforto mesmo que à distância para as famílias lá né? E aí, chegando em casa é um se banhar de álcool, esfregar bem, e rezar, que é o que me resta. Não tenho medo. Os mortos vem, eu enterro eles. Ainda estou aqui."


PARA LER: https://epoca.globo.com/sociedade/a-escalada-dos-enterros-das-vitimas-suspeitas-de-coronavirus-no-maior-cemiterio-de-sp-24331182

https://g1.globo.com/sp/mogi-das-cruzes-suzano/noticia/2020/04/22/sepultamentos-rapidos-e-compaixao-pelas-familias-sao-rotina-para-coveiros-durante-pandemia-nao-podemos-nos-deixar-abater.ghtml

https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,estou-exposto-e-sei-que-corro-risco-afirma-coveiro,70003268200