sábado, 16 de maio de 2020

Visões do Futuro: Lázaro (2)





A seguir, uma visão do futuro pós-pandemia. Não é otimista. Estudar a natureza huamna através da História tornou o otimismo em mudanças tão essenciais, algo fantasioso demais para este humilde professor e escriba.
Quem quiser ver a parte 1 desta história, favor ler "Lázaro", nos arquivos deste blog. 


Ontem reabriram a capelinha aqui do cemitério São Judas. Eu já esperava isso, depois que toda a pandemia, passasse mas na verdade achava que iam fazer isso muito antes do que aconteceu. No fim, foram mais de três meses até poderem reabrir tudo, e mesmo assim as pessoas não frequentam mais ali como faziam antes. Acho que os enterros rápidos acabaram meio que virando rotina entre todo mundo. Espero que não por muito tempo, me sinto mal com isso. Parece um desrespeito desnecessário com o corpo agora. Por outro lado, quem sou eu pra dizer alguma coisa?

A maior demora foi conseguirem a chave da capelinha. Ela tinha ficado, por algum motivo, com o Tobias, mas ele morreu logo pelo pico da doença em meados de Junho, Julho. Tinha levado a chave para casa, e aí depois da morte dele alguém mandou todas as coisas que ele tinha numa caixa, de volta para Recife, com a família dele. Tiveram que entrar em contato, a porta da capelinha era muito antiga, difícil mandar fazer uma cópia a essa alturas das coisas. Alguém sugeriu arrombar e depois consertar a porta: e cadê a coragem pra isso? Mesmo em tempos que nem esses, ainda se tem temor a Deus na terra. Na verdade, acho que até mais do que antes, se duvidar.
Tobias foi o primeiro, mas perdi muitos colegas de profissão nos dias cinzentos da pandemia. Foram bem uns 3; 4, se contar o Mateus, que se demitiu agoniado, com medo de ser o próximo a falecer. 

Saiu dizendo que o cemitério era amaldiçoado, que todo mundo que tava ali ia partir em breve. Eu não culpo ele; naqueles dias, as coisas estavam parecendo todas carregadas de maldição mesmo. Até eu fiquei doente, uma pessoa que não se lembrava da última vez que tinha gripado. Pensei que não ia conseguir sair daquela; estava fraco demais para qualquer coisa, 7 dias acamado, delirando em febre. Minha esposa deixava a comida na porta do quarto e chorava da sala, baixinho, mas eu ouvia. No alto da noite, eu vi o rosto de minha mãe no escuro; senti a rpesença de meu pai; ouvi a voz de meu filho, que foi embora daqui ainda pequenino, sem conhecer direito esse vale de lágrimas.
No fim, não foi dessa vez. E voltei para o trabalho algum tempo depois, até hoje com o peito um pouco pior, como se faltasse um pedaço do meu fôlego nas lidas do dia. Quando eu voltei, as coisas ainda estavam brabas, mais ou menos 50 enterros por dia. Mas estavam melhores que quando tive a folga forçada, quando estávamos fazendo 75 enterros por dia. Normalmente eram 20, 30 no máximo. 

Difícil dizer que eram bons tempos : morte nunca é bom (nem é ruim: simplesmente é). Mas com certeza eram momentos menos pesados, em todos os aspectos.
Agora, quando saímos, a máscara é item obrigatório. A doença ainda não sumiu, ainda está por aí, em algum lugar. Pelo menos é assim que está a nossa cabeça; todos nos olhamos com medo ainda, as mortes ainda frescas em nossa mente. Muitas propagandas dizendo que o pior já passou, que o mundo normal está de volta, mas aonde? Não vejo em lugar nenhum. Muito menos nos ônibus, onde cada tossida é encarada com medo e raiva.

Chego no cemitério e os enterros são rápidos, ainda. Mais que as vidas, a doença matou o coração das pessoas, e botou medo no lugar. Eles vem, olham rapido, pedem pra gente enterrar logo, o quanto antes melhor. Não todos, mas um bom número, que me faz pensar, lembrar que eu via algumas pessoas no ônibus, quando eu voltava do trabalho naquelas dias doentes, dizendo que agora o mundo ia ficar mais gentil, mais humano. Sinto vontade de rir, mas não consigo. Acho que em parte, eles estão certos mesmo: o que que tem de mais humano que esse medo assim, além da razão, além do amor?

Quando isso acontece, restou para nós tentar dar um respeito pros corpos. Então enterramos logo, e paramos um pouco depois do serviço concluído. E ninguém sabe nem nós contaremos nunca, mas eu sei que estamos tentando pensar em uma coisa boa, no coração. Não palavras, só uma imagem às vezes, ou um sentimento bom, que às vezes é melhor que um monte de palavras né?

O mundo não acabou, ainda estamos aqui. Eu e quem sobrou aqui no São Judas. Tem gente que tem medo de nós, outros que chamam a gente de herói, porque aguentamos o tranco mais duro do corona. Eu não sei dizer quem está certo. Tudo que sei é que, quando durmo à noite, sonho com este espaço todo aqui, sem covas nem mortos, só as árvores se espalhando ao longe, e um verde sem fim balançado pelo vento de uma tarde quente. E sei que isso deve querer dizer algo. Mas não sei exatamente o que.

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