A seguir, uma visão do futuro pós-pandemia. Não é otimista. Estudar a natureza huamna através da História tornou o otimismo em mudanças tão essenciais, algo fantasioso demais para este humilde professor e escriba.
Quem quiser ver a parte 1 desta história, favor ler "Lázaro", nos arquivos deste blog.
Ontem
reabriram a capelinha aqui do cemitério São Judas. Eu já esperava
isso, depois que toda a pandemia, passasse mas na verdade achava que
iam fazer isso muito antes do que aconteceu. No fim, foram mais de
três meses até poderem reabrir tudo, e mesmo assim as pessoas não
frequentam mais ali como faziam antes. Acho que os enterros rápidos
acabaram meio que virando rotina entre todo mundo. Espero que não
por muito tempo, me sinto mal com isso. Parece um desrespeito
desnecessário com o corpo agora. Por outro lado, quem sou eu pra
dizer alguma coisa?
A
maior demora foi conseguirem a chave da capelinha. Ela tinha ficado,
por algum motivo, com o Tobias, mas ele morreu logo pelo pico da
doença em meados de Junho, Julho. Tinha levado a chave para casa, e
aí depois da morte dele alguém mandou todas as coisas que ele tinha
numa caixa, de volta para Recife, com a família dele. Tiveram que
entrar em contato, a porta da capelinha era muito antiga, difícil
mandar fazer uma cópia a essa alturas das coisas. Alguém sugeriu
arrombar e depois consertar a porta: e cadê a coragem pra isso?
Mesmo em tempos que nem esses, ainda se tem temor a Deus na terra. Na
verdade, acho que até mais do que antes, se duvidar.
Tobias
foi o primeiro, mas perdi muitos colegas de profissão nos dias
cinzentos da pandemia. Foram bem uns 3; 4, se contar o Mateus, que se
demitiu agoniado, com medo de ser o próximo a falecer.
Saiu dizendo
que o cemitério era amaldiçoado, que todo mundo que tava ali ia
partir em breve. Eu não culpo ele; naqueles dias, as coisas estavam
parecendo todas carregadas de maldição mesmo. Até eu fiquei
doente, uma pessoa que não se lembrava da última vez que tinha
gripado. Pensei que não ia conseguir sair daquela; estava fraco
demais para qualquer coisa, 7 dias acamado, delirando em febre. Minha
esposa deixava a comida na porta do quarto e chorava da sala,
baixinho, mas eu ouvia. No alto da noite, eu vi o rosto de minha mãe
no escuro; senti a rpesença de meu pai; ouvi a voz de meu filho, que
foi embora daqui ainda pequenino, sem conhecer direito esse vale de
lágrimas.
No
fim, não foi dessa vez. E voltei para o trabalho algum tempo depois,
até hoje com o peito um pouco pior, como se faltasse um pedaço do
meu fôlego nas lidas do dia. Quando eu voltei, as coisas ainda
estavam brabas, mais ou menos 50 enterros por dia. Mas estavam
melhores que quando tive a folga forçada, quando estávamos fazendo
75 enterros por dia. Normalmente eram 20, 30 no máximo.
Difícil
dizer que eram bons tempos : morte nunca é bom (nem é ruim:
simplesmente é). Mas com certeza eram momentos menos pesados, em
todos os aspectos.
Agora,
quando saímos, a máscara é item obrigatório. A doença ainda não
sumiu, ainda está por aí, em algum lugar. Pelo menos é assim que
está a nossa cabeça; todos nos olhamos com medo ainda, as mortes
ainda frescas em nossa mente. Muitas propagandas dizendo que o pior
já passou, que o mundo normal está de volta, mas aonde? Não vejo
em lugar nenhum. Muito menos nos ônibus, onde cada tossida é
encarada com medo e raiva.
Chego
no cemitério e os enterros são rápidos, ainda. Mais que as vidas,
a doença matou o coração das pessoas, e botou medo no lugar. Eles
vem, olham rapido, pedem pra gente enterrar logo, o quanto antes
melhor. Não todos, mas um bom número, que me faz pensar, lembrar
que eu via algumas pessoas no ônibus, quando eu voltava do trabalho
naquelas dias doentes, dizendo que agora o mundo ia ficar mais
gentil, mais humano. Sinto vontade de rir, mas não consigo. Acho que
em parte, eles estão certos mesmo: o que que tem de mais humano que
esse medo assim, além da razão, além do amor?
Quando
isso acontece, restou para nós tentar dar um respeito pros corpos.
Então enterramos logo, e paramos um pouco depois do serviço
concluído. E ninguém sabe nem nós contaremos nunca, mas eu sei que
estamos tentando pensar em uma coisa boa, no coração. Não
palavras, só uma imagem às vezes, ou um sentimento bom, que às
vezes é melhor que um monte de palavras né?
O
mundo não acabou, ainda estamos aqui. Eu e quem sobrou aqui no São
Judas. Tem gente que tem medo de nós, outros que chamam a gente de
herói, porque aguentamos o tranco mais duro do corona. Eu não sei
dizer quem está certo. Tudo que sei é que, quando durmo à noite,
sonho com este espaço todo aqui, sem covas nem mortos, só as
árvores se espalhando ao longe, e um verde sem fim balançado pelo
vento de uma tarde quente. E sei que isso deve querer dizer algo. Mas
não sei exatamente o que.
Tempos sombrios na história.
ResponderExcluirParece um conto de idade média mas é atual...
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