sábado, 2 de maio de 2020

Retratos na Cidade Pandêmica: Lázaro

Fonte: paintingvalley.com

"Esses dias um político desses falou que os caixões do corona estavam vazios, que a gente estava enterrando sem corpo dentro só pra aumentar os números lá nas estatísticas e tudo mais. Então a última família que veio por aqui nos forçou a abrir tudo na frente deles, mesmo que fosse contra o regulamento. Tentei falar que não era uma boa ideia, além da doença, o corpo tinha passado um tempo sem preservação, já estava avançado o estado.... não teve jeito, um deles até me ameaçou, disse que se eu não abrisse ia ter que ser ele a fazer isso, e eu não ia gostar disso. Não gostei do tom dele, mas achei melhor fazer tudo logo, terminar com isso, para poder seguir com os outros corpos ali. Haviam muitos naquele dia. Esses dias, sempre tem muitos.

Então, abrimos tudo e o olhar da moça, acho que era filha do falecido, foi terrível, mas eu já esperava. Porque quando uma pessoa morre, você se esforça para guardar na cabeça a última imagem que tinha dela, que provavelmente é algo feliz, ou sei lá, um momento de força dela contra alguma coisa. Normalmente a doença. Mas quando a gente abriu o caixão, a pessoa viu a verdade. Não só que era mesmo o pai dela ali, mas o que a morte fez com aquele corpo, sabe, toda a decadência. Então vieram as lágrimas, e o mesmo homem que me ameaçou disse que ia processar o cemitério por descaso com os parentes. Não entendi, mas também deixei de me importar com essas coisas a muito tempo. Desde antes da pandemia mesmo, eu acho. Não tem espaço para coisas mesquinhas para quem trabalha com a morte.

Nem sempre é assim, claro. Tem o pessoal que entende e respeita a situação, e olha só de longe, tristes. Dá vontade de dar uma palavra de consolo, mas não sei o que dizer. Nunca sei o que dizer. Quando eu comecei nesse ramo, eu tinha um caderninho com umas frases de consolo  para as famílias, mas com o tempo eu percebi que não adiantava nada. A morte é real demais para ser resumida em umas palavras; a sensação de perda é forte demais para falar qualquer coisa. Acho que deve ser por isso que tanta gente nega que aconteceu, ou vai pra farra depois de uma coisa dessas. É melhor fugir do fim que encarar, né? Nao julgo. Deixei de julgar há muito, muito tempo.

Apesar disso, tem sempre a dança toda da despedida, né, os ritos que a gente tem que fazer para começar a superar. Mas nem isso tá podendo acontecer, sabe, mesmo os corpos que são suspeita de Corona a gente tem que enterrar com todos os cuidados, até mesmo a capelinha do cemitério teve que fechar, pra evitar aglomeração. E lá vem cinco pessoas enterrar o morto deles, e nem podem olhar por corpo direito, nem podem chorar em cima do corpo. Pra eles deve ser assim como se a pessoa tivesse simplesmente sofrido e sumido do mundo, virado vento.

Olho para eles e penso em como minha família ia sofrer com o meu caso, com a minha partida desse mundo. Não, falar a verdade para você, nem penso nisso não. Só organizo as coisas, e faço as covas, tranquilo. Tem que ter tranquilidade nessas horas, até para tentar passar algum conforto mesmo que à distância para as famílias lá né? E aí, chegando em casa é um se banhar de álcool, esfregar bem, e rezar, que é o que me resta. Não tenho medo. Os mortos vem, eu enterro eles. Ainda estou aqui."


PARA LER: https://epoca.globo.com/sociedade/a-escalada-dos-enterros-das-vitimas-suspeitas-de-coronavirus-no-maior-cemiterio-de-sp-24331182

https://g1.globo.com/sp/mogi-das-cruzes-suzano/noticia/2020/04/22/sepultamentos-rapidos-e-compaixao-pelas-familias-sao-rotina-para-coveiros-durante-pandemia-nao-podemos-nos-deixar-abater.ghtml

https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,estou-exposto-e-sei-que-corro-risco-afirma-coveiro,70003268200




Um comentário:

  1. O mais triste de tudo ,nestes dias cinzentos, é a falta de amor ao próximo,ao próximo que diz: Fique em casa,aos próximos da área da saúde,aos próximos dos supermercados,aos próximos que trabalham com a morte ,com o próximo que está do lado, convivendo e que pode ser contaminado pelo descrente na VERDADE, mas CRENTE nos DIZERES e FAZERES de um MENTECAPTO que ao saber dos mortos,diz :E DAÍ?!

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