quinta-feira, 30 de abril de 2020

Crônicas da Cidade Pandêmica: The future belongs to the children


Tem sido difícil ver pontos positivos esses dias, esse ano de 2020 particularmente. Conversei esses dias com uma aluna de inglês que pretendo tatuar algo no braço, após toda essa morte e desespero que assolam nossas ruas e vidas, alguma coisa dizendo "2020: eu sobrevivi". Ou algo igualmente cafona. Acho que ganhamos o direito de ser cafona após sobreviver a uma pandemia, não? Com tanto pesar ao nosso redor, a cafonice é um sinal de sobrevivência, creio.

E apesar de tudo isso, também é 2020  um ano de nascimentos, de renovações de certa forma. Em fevereiro, nasceu o filho de uma amiga nossa aqui de casa. Seu nome é Martín, um portuguesinho branquelo fofo e lindo como nunca tinha visto, os olhos azuis curiosos que tudo fitam ao seu redor. Dia nove de Abril, meu sobrinho Bernardo completou um ano, e tem sido uma felicidade vê-lo crescer, mesmo que de longe. Ele gosta de ajudar a mãe a cozinhar coisinhas gostosas . Esses dias, acreditem ou não, ele ajudou a fazer um cupcake de laranja! Para este tio bajulador, que também ama coisas de cozinha, esta foi provavelmente a coisa mais emocionante que eu vi ele fazer, e não puder deixar de derramar a proverbial lágrima de orgulho.

E agora, vejam vocês, nasce meu outro sobrinho, Lee Hesse, em terras canadenses, tão distante de nós mas tão próximo de nosso coração. O rosto dele é de uma mistura poética entre a mãe, luana Hesse, e o pai, Freddie Hesse, meu irmão que partiu do Brasil em busca de sonhos e realizações (o que o torna, mutos diriam, o irmão mais sábio de nós). Acompanhei nervoso o desenvolver do nascimento dele neste dia de hoje; somente o santo dos professores deve saber como consegui dar uma manhã toda de aulas sem sequer pestanejar em momento algum. E quando ele nasceu, e vimos (eu e Aline aqui em casa e meus pais lá em Belém do Pará) a face do novo Hesse Garcia neste mundo sofrido de meu Deus, confesso que a emoção bateu forte.

Essas crianças, esses serezinhos humanso, são o futuro que esta nascendo. Não posso dizer que eles trazem, consigo, a promessa de dias melhores; seria uma cobrança absruda em cima de bebês que nada podem fazer, exceto conquistar nossos corações. No entanto.... eles são provas da existência de um futuro. Muitos podem dizer que eles são condenados a viver nesse mundo absurdo: eu digo que eles devem nos servir de inspiração sólida, viva, para a construção de um mundo melhor, das cinzas deste velho e patético mundo que permite homens como Bolsonaro e seus capachos viverem e troçarem do sofrimento alheio.

Em um mundo onde a morte impera, esses bebês desafiam-nos a crer na vida. Não podemos falhar com eles: há ainda milhas a seguir antes de dormimos. Que possamos arrumar a casa  e perrmitir que eles possam conseguis sonhar também, e não apenas sobreviver. Que sejam eles as pessoas que nos trarão esperança no outro, no vizinho ao lado.

Seja bem vindo, Lee Hesse. Titio te ama, sempre te amou, e sempre vai te amar.


PARA OUVIR: The future belongs to the children

terça-feira, 28 de abril de 2020

Crônicas da Cidade Pandêmica: Salvação virtual


Dizem que as pessoas tem suas formas de superação de sensações ruins das mais diferentes formas. Alguns gostam de música clássica, concertos de piano, etc. Outros buscam conforto em filmes de ação, dramas, séries de Netflix ou Amazon Prime....  Livros também são uma boa opção, ao menos para exercitar a mente um pouco (aqui também podemos apresentar como opção as cruzadinhas, eternas companheiras dos entendiados)

De minha parte faço tudo isso, e tenho dois gêneros especiais aos quais me devoto: o horror e o suspense. Já ouço alguns dizendo: mas que disparate, Alfredo! Por que não vê uma coisa mais leve, pra sorrir e relaxar? O que sua esposa (que caso vocês não saibam, tem verdadeiro pavor de filmes de horror, mas ama filmes de suspense) pensa disso? Você não fica ansioso além da conta, ainda mais com tudo isso que tem acontecido ao seu redor?

E lhes digo que não, na verdade me sinto bem relaxado. Primeiro porque acredito que ao me imergir nestes tipos de história, eu sinto a catarse de poder lidar com o horror lá de fora. Naquele momento, não é mais o meu foco o medo do dia-a-dia, e sim um zumbi ou monstro bobo na tela da TV. Ali, vendo ou jogando ou lendo, eu controlo aquela ansiedade, torno-a parte de mim, e posso delsigá-la a qualquer momento. Não estou à mercê do medo; ao contrário, sou um participante ativo e capaz de exercer minhas ações neste mundo. Só preciso entender as regras - algo que é bem mais fácil em mundos de horror e suspense que no mundo real.

Essa catarse deve vir para todos em algum momento. e em diferentes formas: alguns talvez busquem chorar com uma canção triste - e isso não é ruim, chorar na verdade faz bem para a alma, é um curador de corações feridos. Outros talvez busquem ação para agitar seus corações, dar-lhes forças contra o dia que tenta destruí-los - e isso também é válido, nestes tempos sinistros, tudo que nos der um pouco de forças a mais é mais do que bem-vindo. Tudo que puder nos salvar, que seja a aprtir desse momento algo sagrado, ao menos para você mesmo. Não recue à zombarias, arme seu melhor controle de videogame e vá lá matar aqueles monstros. Isso não é esquecer do mundo: é higienizar sua mente para as batalhas crueis do mundo real.

domingo, 26 de abril de 2020

Crônicas da cidade pandêmica: A Grande Noite

Fonte: pixabay

À noite, as coisas ficam mais claras no Butantã. Isso, apesar do fato de muitos preferirem o dia; isso é perfeitamente normal, tem as pessoas do dia e da noite, e acho que sempre existirá. Mas acho que a noite é a face verdadeira do mundo, o momento que ele se mostra sem maquiagens cobrindo as falhas.

Sou suspeito para falar, é claro: sempre fui um habitante da noite dos mais empertigados, então é claro que eu defenderia ardentemente meu momento máximo das 24 horas da terra. Mas tenho argumentos fortes, embora eu admita que sejam no mínimo tendenciosos. Pois para mim, a noite é como mundo sempre deveria ter sido.

As ruas vazias, exceto por um ou outro carro passando; pessoas cambaleando exaustas para casa também são comuns, embora não necessaramente em grande número. O vento parece mais forte também; as árvores balançam solenes, acenando lentamente para o céu estrelado acima delas. pássaros em algum lugar, desafiando o urbanismo distorcido que existe abaixo deles.

Os cães e gatos dominam as ruas também; andando e buscando abrigo ou comida. É claro que eles não pertencem ali, e que a vida é bem mais difícil para estes pobres animais forçados a sobreviver em um ambiente hostil.... ainda assim, não consigo deixar de pensar que o elemento deslocado ali é o humano, quando surge com seus carros barulhentos, suas músicas estourando os tímpanos, sua pose de donos de tudo. E como gostamos de tudo ao nosso bel-prazer, não?

Não é a toa que muitas pessoas burlam tragicamente a quarentena, sem nenhuma necessidade: creio que elas simplesmente não conseguem entender um mundo quea natureza os força a tomar atitudes drásticas. Tudo deve estar sob o controle máximo da humanidade: rios devem ser aterrados, animais devem ser domados, montanhas devem ser aplainadas. Entender-se como parte da natureza é penoso ao Homem, e entender que a natureza pode esmagar seus planos com facilidade é mais penoso ainda. Resta então a negação, até o amargo, amargo fim.

E é por isso que a noite é mais natural que o dia para mim: porque tem, em sua grande parte, pouquíssimo do elemento mais falso em nosso planeta: as pessoas.

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Crônicas do Passado: O tempo, essa espiral eterna

No one can control time, por Poojitha Jagini
Publico aqui uma crônica que escrevi em janeiro deste ano, quando a pandemia parecia tão distante que nem valia a pena considerar. Parecem anos agora... Mas acho que vale a pena ler e pensar em como éramos antes, pra poder entender que caminhos tomar depois de tudo isso, ali na frente, depois dessa escuridão toda. Andiamo, andiamo. 


Todo trabalhador em São Paulo, encarando horas de lotação e baldeação, tem um quê de filósofo, quanto mais não seja pela força do observar pelas janelas sujas do ônibus. Eu também me classifico assim, e portanto, dia desses, eu estava olhando e pensando, humildemente pensando, nos rumos que as vidas tomam nesse nosso país, mundo, plano de realidade, tudo isso num também humilde busão. O que, incidentalmente, talvez seja um dos melhores lugares para divagar; na melhor das hipóteses, é uma distração daquele cansaço absurdo pré-trabalho que acomete a todos nós, trabalhadores, que saímos nas horas mortas da manhã, quando o dia não acordou ainda. O ócio criativo de 40 minutos a uma hora, ou quanto tempo tenhamos antes de chegar aos trabalhos.

Mas eu falava dos meus pensamentos específicos naquela manhã, e eles todos apontaram para uma direção: aprendizado, essa palavra-tudo. Olhamos nossa vida, pensamos nos rumos que tomamos, e sempre em alguns pontos vemos os velhos erros e acertos, repetindo-se, tal como marcos desgastados de rumos já trilhados. E se assim for, será que estamos seguindo em frente, ou andando em círculos? Não tenho respostas: também eu tenho meus marcos errados pelos quais sempre passo, e nos quais sempre paro e reflito, ou me angustio, dependendo do que vejo.

Pensando nisso, surgem à mente uma série de outras reflexões, embaladas pelo sacolejar do velho ônibus .E se os velhos marcos, e os caminhos espiralados, forem verdadeiros tanto para o indivíduo quanto para a vida humana em geral? E se, assim como cada pessoa, a humanidade como um todo também escolha ignorar seus erros,e seguir em círculos, mudando apenas a forma como anda? Longe de mim tornar este pequeno texto um grande debate, até porque nem me refiro exatamente à política. 

Contudo, por vezes olho para as décadas passadas com minhas lentes de historiador ocioso, e observo seus filmes, canções, obras.... e não posso deixar de pensar que elas estão tentando me dizer algo ali, como que um clamor de atenção, talvez. Muito se fala do zeitgeist, o jeito alemão de se falar do espírito do tempo que define gerações em cada época. Talvez as obras de arte estejam ali como reflexos destas épocas, ecos translúcidos dos obstáculos, sentimentos, inspirações e aspirações de cada período. Talvez as nossas saudades de um tempo que não vivemos, seja porque vemos nestas fantasmagorias um reflexo de nossas barreiras físicas e emocionais, uma razão para nossas lágrimas enterrada no passado.

Se assim for, se cada época tiver em si um reflexo do futuro, então não há avanço em absoluto, apenas caminhadas diferentes, joggings metafóricos em ritmos diferentes . E cada período humano perpassa pelos mesmos erros de antes, apenas com mais tecnologia, ou talvez as repetições sejam propositais, e na verdade seguir em frente seja menos uma consequência e mais uma decisão, em grupo ou individual. A História como uma peça de teatro, casa cheia, toda noite de um século.
Eis um pensamento intrigante. Vou ter que deixar um espaço mental na volta do trabalho, ou talvez na hora do almoço.



PARA OUVIR: TIME

terça-feira, 21 de abril de 2020

Retrato na Cidade Pandêmica: Suzette Salomé

Head of a prostitute, por Vincent Van Gogh

"Me chamam de 'puta' por todo lado que eu vou, até meus clientes me chamam assim. e no entanto, quem sabe quem eu sou?

Não eles nas ruas, julgando em cada olhar. Desejando também, aposto, esses hipócritas.

Não minha família, que me expulsou de casa quando eu tive a coragem de aceitar quem eu era de verdade, mulher, não homem como meu pai queria, como minha mãe rezava pra eu ser (e nunca parou de rezar, eu sei).

Nem mesmo minhas amigas aqui nesse inferno, que me consolam quando as coisas apertam, e me dão um tapa na cara quando eu tenho que levantar e ir pra luta. Vivemos com a família que nos aceita; o sofrimento une mais que o sangue. E ainda assim, nem elas sabem.

O ponto que a gente trabalha fica perto de uma faculdade aqui da capital, faculdade de riquinho, cheia de filhinho de papai. Eles vem muito aqui, mas não só eles: tem executivo, homem de escritório, bancário, pastor de igreja.... carros de ricos e de pobres, gente curiosa, gente maldosa.... 50 reais o programa, esse é o valor mínimo aqui.  Às vezes mais, se o cliente quer uma coisa diferenciada, mas aí depende muito, de quem é, se a gente já conhece.

Dizemos para meninas mais novas, olha, cuidado, olha bem com quem tu vais, pra onde tu vais.... São mais de 5 anos nessa lida né. E eu já passei por muitas dores, então tento evitar que elas passem por algo parecido. É difícil: o desespero leva a gente a aceitar umas coisas terríveis. A gente aceita de acordo com o que a gente precisa para sobreviver.

O movimento caiu depois da pandemia, confesso. Caiu, mas não zerou. Ainda bem, porque senão como que eu ia comer? Faço agora o programa por 30 reais; as outras meninas também, porque senão aí que não conseguimos mesmo nada. Mas tá complicado demais, algumas de nós não podem mais nem ficar na rua com isso tudo.... A Alice, por exemplo, tá com 55 anos e nem consegue ficar em sapato de salto alto mais, dói muito o calcanhar, ela fica que não consegue trabalhar por uns dois dias. Aí ela vem de rasteirinha, mas todo dia tem doído. E os clientes dela são tudo gente mais velha, e esses não tem aparecido por aqui, só um ou outro velho assanhado que fugiu da quarentena que surge, aí ela consegue um trocado.

Nós moramos juntas, todas nós, numa vila aqui perto do ponto,uns kitnetzinhos mobiliado, algumas rachando, outra com um só para si. A gente tem rachado os lucros pra comprar comida, mas não sabemos quanto tempo ainda vamos conseguir. Final do mês tá chegando, o aluguel vem com tudo, e cadê o dinheiro? Ninguém sabe nem como vai comer no dia, imagina ter o dinheiro todo da moradia. Aí  tem que ir pra rua né, e se arriscar com doença. Mas a gente sempre se arrisca, todo dia. Ninguém vai fazer por nós, é só  nós mesmo.

Não me olhe assim. Vá à merda com a sua piedade. Eu quero ela pra que? Aposto que você tá pensando,  coitada da putinha, tá pegando chuva, tá tentando viver... vá à merda com com isso tudo. Sabe o que eu quero? O que nós queremos, eu e as meninas? Que não saiam pisando na gente toda vez que saírem na rua, quando saírem deposi disso tudo. Porque pisam sim, não com os pés, mas com esse olhar aí que julga, que condena.

Como se você soubesse de tudo que passei. Não tem nem ideia do quanto tentei arrumar outra coisa, outro emprego, pra sair das ruas. E as portas fechadas, a zobaria, porque ninguém que contratar bicha fodida. Você não sabe disso, não sabe do quanto eu choro de madrugada, no quartinho encardido, pensando nos meus irmãos que eu nunca mais vou ver, nem sei por onde estão, meus pais esconderam eles de mim. Penso tanto neles, tanto... mas não nos meus pais. Esses quando eu penso neles, não sinto saudades, só dor.

Mas você não sabe nada disso, e nem tem como saber, não daí de onde você me olha.

Você nem sabe meu nome,

Mas eu sei. "



PARA OUVIR: Me llaman Calle

PARA LER: Coronavírus não interrompe prostituição a R$ 30 no centro de São Paulo

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Crônicas da cidade pandêmica: O professor e Sísifo

iStock/Getty)

De segunda a sexta, eu tenho uma rotina. Acordo mais ou menos às sete horas da manhã (às vezes às 06:30), vou tomar café, organizo meu computador em cima da mesa da sala e começo a trabalhar dando aula. Sou professor de Inglês, é como eu ganho o famoso "pão de cada dia" aqui na cidade de São Paulo. Tenho uma grande sorte: porque sou professor de alunos adultos, e em sua maioria pessoas trabalhando em grandes empresas, existe uma certa cultura já incutida neles de usar o computador para chamadas virtuais. São um grupo que tem em si o costume de reuniões via Skype ou Zoom, e que por serem adultos, carregam a responsabilidade de comparecer e se esforçar em casa para avançarem na compreensão da língua inglesa.

Infelizmente,o mesmo não se pode dizer de meus colegas professores regulares, trabalhando em condições terríveis neste momento pandêmico. A profissão, verdade seja dita, nunca foi respeitada devidamente; quando não é considerada coisa de vagabundos reclamões (pelo Estado, quando buscamos nossos direitos), é endeusada como "vocação", igualando-nos a padres e certamente visando nisso o voto de pobreza dos mesmos, já que assim podem justificar para si mesmos  sem sentirem-se culpados, o porquê do salário de fome com o qual muitos professores tem de sobreviver.

Junte-se a isso, neste momento,um momento de crise na sociedade em geral, pais desesperados para que a escola tome o papel deles como educadores  para seus filhos quarentenados em casa (sendo que esse processo deveria ser uma parceria), e uma direção escolar que teme mais do que nunca perder clientes, e temos a completa recieta pro desastre. E como sempre, a carga disso tudo cai em cima dos professores regulares. São eles os que tem de fazer os alunos produzirem, são eles os responsáveis pelo sucesso ou fracasso desta empreitada em um momento que ninguém viveu antes, que ninguém sequer imaginou que iria viver.

A cada dia que trabalham os professores sofrem mais uma pressão, sem saber se perderão aulas (e portanto, dinheiro). sem saber qual a próxima problemática que será criada. "Como todos nós!", o mais cínico diria,e  ele estaria certo: como todos nós, os professores sofrem igualmente. Então por que diminuir seus esforços? Por que dizer que eles estão em melhores condições que outros trabalhadores, forçados a um home office que na verdade os suga 24 horas por dia?  Por que exigir dos professores o preparo que sabe-se que NINGUÉM teve para esses tempos?

A resposta para isso tudo é simples: falta de empatia. O mundo pandêmico surgiu, e revelou o quanto há pessoas que simplesmente observam seu próprio umbigo e se recusam a entender o sofrimento de outros, o esforço que se faz para manter um resquício de ordem e normalidade em nossos dias turbulentos. Querem tudo como antes, querem resultados sem arregaçar suas próprias mangas. Bem, isso não vai acontecer. Para sobrevivermos, precisamos todos trabalhar juntos, de mão metafórica dada. Ou vivemos e trabalhamos juntos, ou morreremos sozinhos e sufocados.




domingo, 19 de abril de 2020

Crônicas da Cidade Pandêmica: A triste revelação de Cassandra

Fonte: The Lancet

Saio de meu apartamento e ando para o portão do condomínio, no qual tenho o privilégio e a sorte de poder morar em meio a esta crise tão séria. Lá fora está frio agora, por volta de 17 graus à noite, mais frio ainda no oitavo andar, onde moramos eu e minha esposa. Estou indo ao portão para pegar uma pizza: Eu e Aline estamos comendo bem ao longo de almoços e cafés da manhã, mas de vez em quando sentimos necessidade de uma besteria, quanto mais não seja, para distrair dessa situação atroz que vivemos.

Tudo ao redor soletra cuidado e atenção. no elevador , avisos para evitar tocar nos botões do mesmo, tentar usar a ponta da chave para apertar o andar aonde se deseja ir. Ao sair, um dispensário de álcool em gel nos exorta a limpar as mãos; as portas de vidro estão por todos os lados lembrando a todos do Covid-19, da necessidade do isolamento social. Ao chegar na portaria, vejo que o porteiro está cansado e com uma máscara, e atrás dele há uma série de vidros de álcool em gel; na porta do cubículo onde trabalha, há instruções sobre como proceder na mudança de cada turno, as limpezas a serem feitas, a distância a ser mantida entre cada um dos porteiros trocando de turno. Os próprios entregadores estão completamente equipados: máscaras, luvas, distância. Pegar uma pizza virou um momento surreal.

É difícil não entender a gravidade do momento que estamos vivendo no mundo. Mas ainda tem muitas pessoas que se recusam a fazê-lo. Não me refiro aqui, é claro, aos trabalhadores essenciais e às pessoas que infelizmente, foram abandonadas pelo governo federal à própria sorte, e forçadas a sair de casa em plena pandemia para ganhar seu pão. Falo aqui, daquelas pessoas que fazem festas, andam despreocupadas nas ruas, juntam-se em grandes manifestações contra a quarentena. A maioria, quero crer, é por ignorância da gravidade da situação; contudo, é bem claro para mim que tem uma grande parte que simplesmente o faz para ser do contra, porque querem ser os rebeldes num momento que isso é a mais pura tolice.

Infelizmente, isso tem um resultado bastante negativo. Já me chegam pela internet, as mortes e infecções de pessoas que previamente não se viam atingíveis pela doença. Evidentemente que não se pode dizer de onde veio a infecção, mas se o sujeito fez uma festa na semana passada e agora apresenta os sintomas, não me parece um grande salto de dedução que ele tenha pego isso como resultado direto de sua imprudência. E infelizmente, isso afeta diretamente as pessoas ao seu redor.

Essas pessoas agora, aos poucos, advogam pela proteção, e parecem entender o impacto da questão ao seu redor. É a pior das compreensões, pela dor quando poderia ter sido pelo amor (de alguém que se importasse com o indivíduo e estivese tentando informá-lo) ou pelo saber mesmo, fontes não faltam, ao contrário.  Temo que essa seja a pior maneira de entender. Tal como na lenda de Cassandra, as verdades foram ditas e essas pessoas ignoraram até ser tarde demais. Espero que outras despertem para seu redor, e entendam que o mundo antigo acabou.E que não destruam, para si e para seu próximo, a oportunidade de poder ver o novo mundo que virá.

quinta-feira, 16 de abril de 2020

Crônicas da Pandemia: Mundos Virtuais

(fonte: Shutterstock)

Em momentos de isolamento social, acredito que o whatsapp de muitos de nós tem "bombado", como dizem as pessoas mais conectadas que eu. Não que isso já não acontecesse antes: a discussão se nossa sociedade estava mais no mundo virtual que no real era algo de até antes do whatsapp ou facebook. Tantos filmes terríveis nos anos 90 sobre jovens perdidos dentro do computador, às vezes até literalmente (a ideia de tecnologia naqueles tempos era algo similar à magia)....

Hoje, podemos dizer com certeza que sim, vivemos muito de nossas vidas em um mundo virtual - embora absolutamente contra a vontade.  Presos em nossas casas, qual a opção que temos para conversar com nossos amigos, nossos familiares? Nenhuma, então toca a fazer chamadas via skype, ou facebook mesmo. E com isso os novos dramas que surgem:

- Aqui não tá pegando o sinal de wi-fi!

- Oi gente! Tão me ouvindo? Não né?

- Calma pessoal, um de cada vez senão corta todo o áudio!

Mas eu sou muito grato a ser possível essa tecnologia, pois caso contrário eu teria perdido o aniversário de um ano de meu sobrinho Bernardo, festejado neste mundo pandêmico mas com toda a alegria. Também não teria conversado com meus pais, tão longe no norte do país e preocupados comigo e minha esposa, no coração desta crise toda.... Nem mesmo teria conversado com meu irmão mais novo, morando no Canadá e que me ligou hoje mesmo, para mostrar o berço de madeira que servirá de conforto para seu filho que está para nascer.

E assim vamos seguindo esses dias cinzas, pondo a cor onde podemos, nem que seja pela tela do computador. Amizades menores? Sensações falsas? Quem teria a ousadia de dizer isso? O que importa, o que torna tudo real, é como está nosso coração nisso tudo. E vamos vivendo.

PARA OUVIR: UM CLÁSSICO 

PARA OUVIR 2: Parabolicamará


quarta-feira, 15 de abril de 2020

Crônicas da Cidade Pandêmica: Olha pro céu, meu amor




Hoje, o céu estava na maioria dos stories do Whatsapp, e fotos no Facebook, ou no Instagram ou o que seja. Não se pode dizer que foi uma ação em massa, a não ser que  tenha sido organizada pelo próprio planeta Terra - o que não seria algo tão difícil de se crer, na verdade. Coisas mais estranhas tem acontecido neste ano de 2020.

Se perguntassem aos espectadores o que tinha de tão peculiar naquele céu, alguns diriam: são os tons de roxo. Outros afirmariam: são os vermelhos resplandecentes. A verdade é que cada um pode ter olhado em um momento específico e, como os cegos com o elefante, tomado uma parte do fenômeno como o todo. Perdoável, se considerarmos o contexto. Acho que a maioria das pessoas simplesmente estava buscando uma notícia boa, qualquer notícia, e depararam-se com o céu, e tal qual nossos antepassados, viram nele um reflexo de um futuro promissor.


E é como eu disse: nós todos, quarentenados e os que não podem ficar em casa, temos fome de notícias boas tal qual um esfomeado que não come há dias. Talvez isso explique o porquê das pessoas quererem acreditar em remédios milagrosos (mas mortais se tomados indevidamente), ou mesmo teimem em tentar crer no Corona só como uma gripezinha. Quero crer, preciso crer, que a maioria dessas pessoas estão tomadas menos pela idiotice e mais pelo desespero ou desinformação.

Então, quando a natureza oferece um espetáculo desse, tão distante das mentiras e falsidades que temos vivido, onde mortos são zombados em plena avenida paulista, e seus detratores não sofrem qualquer punição; onde médicos são agredidos e estigmatizados por cumprirem seu dever; onde o mero ato de sair pra comprar comida nos deixa tensos; quando surgre algo verdadeiro e belo aos nossos olgos, é tempo de celebrar. Que importa que tenha sido , como falou a Vejinha,  um provável efeito da poluição na cidade? Olha para cima agora, amor, vê como o ceú está lindo. Sonha com os dias de antes, e sente eles no seu coração.


PARA OUVIR: Blue Skies




terça-feira, 14 de abril de 2020

Crônicas da Cidade Pandêmica: Canções e canções


Se você deixar, o isolamento pode te levar à destruição mental. Na verdade, até se você não deixar, ele pode fazer isso - ninguém consegue realmente controlar o quanto um isolamento pode influenciar você. O que fazer portanto? A ordem é controle de danos.

Uma das formas que eu mais consigo fazer isso é com música. E muito há que se dizer ainda das músicas relaxantes como panaceais para acalmar uma mente confusa e agitada. Minha esposa e eu somos grandes fãs desse tipo de música: recentemente pusemos aqui uma canção da Enya e a paz que reinou na sala de estar só foi quebrada pela luta incessante dos nossos dois gatos a pular um sobre o outro. Mas por gloriosos 15 segundos, houve paz naquele recinto.

Outro tipo de música que ouvimos muito juntos aqui é o pop anos 80, que inclusive é um outro que merece um estudo a parte. Há algo de fascinante naquelas músicas tão melosas e chicletentas existirem num momento, numa década, que as coisas pareciam solenemente estar indo para um fim, seja este nuclear ou econômico. Somente uma época assim (antes da nossa atual, claro) poderia fazer canções de amor falando sobre fim do mundo e explosões atômicas com tamanha maestria e canastrice...

Contudo, confesso que nem a World Music, nem o pop 80's são os que mais me levam para um estado de calma mental. O estilo escolhido para esses momentos é nada menos que o BREGA , com todo seu bole-reboles, seus Frutos Sensuais, seus Nelsinhos Rodrigues e Wanderleis Andrades. Quanto a isso, tenho uma explicação: por experiência própria, e por conversar com meus amigos desterrados aqui pelo eixo Sul-Sudeste, tomamos o brega como nossa canção de exílio, não importando qual  letra que seja. Basta apenas os primeiros acordes de um teclado enlouquecido ou um baixo romântico, e voltamos aos momentos na terrinha, bons ou ruins, mas nossos.

Talvez seja esse o segredo do brega comigo, o porquê de eu cantar a plenos pulmões pérolas como "Eu Voltarei", "Gringo Lindo", ou "Ao pôr do Sol". Quando canto, e danço desajeitado pela sala (para espanto e deleite de minha amada esposa), estou na verdade viajando, na memória, para os cantos onde mais me senti seguro. Longe das incertezas e dores do agora. Acho que posso ser perdoado, dado o momento atual, por um certo romantizar do passado.

Qual a sua forma de fuga disso tudo ao nosso redor?


PARA OUVIR: Desejos, de Banda Sayonara

PARA OUVIR 2: Ao Pôr do Sol, de Teddy Max

PARA OUVIR 3: Conquista, de Wanderlei Andrade


sábado, 11 de abril de 2020

Crônicas da Cidade Pandêmica: Delivery

(Lifeline, de Pascal Campion)

A comida estava acabando aqui em casa, então nos organizamos e pedimos uns vegetais e suprimentos básicos pros próximos quinze dias. A coisa toda saiu menos cara do que possa parecer a primeira vista; os mercados ao redor resolveram trabalhar em massa com entrega, então acabamos pagando mais ou menos o preço que pagaríamos indo no mercado em si. Tudo feito com as exigências destes novos tristes tempos: o pagamento online, a distância constrangida entre as duas pessoas no processo de entrega e recebimento, o olhar meio desconfiado/meio julgador dos que passam na rua e observam esta pantomina.

Olho então para o entregador, e penso em quanto essas pessoas, esses profissionais do delivery, arriscam suas vidas neste momento, aliás até mesmo antes destes tempos, cruzando as ruas em bicicletas ou motos para nos proporcionar um fruto de um privilégio que temos. Sim, pois o próprio ato de eu poder pedir uma comida e ela ser entregue em minha casa é um privilégio que deve ser reconhecido - não por uma falsa moralidade, mas para se entender o que ainda tem que melhorar para que todos possam viver melhor.

Esses trabalhadores estão ali fora, nesta mesma hora em que escrevo estas linhas, e a temperatura está 16 graus. Chove um pouco, então a sensação térmica deve estar menor ainda que isso. Eles enfrentam estas ruas não por um senso de bravura - embora certamente há que ser valente para se conseguir ter forças neste momento tão complicado - mas sim pela necessidade. Sem o trabalho, não haverá o pão para comer, e num país em que o governo nada se importa com esses homens e mulheres, o risco de adoecerem é melhor que a certeza da fome. É a lógica perversa que o sistema lhes força goela abaixo, e que é apoiado por um presidente que joga com vidas ao invés de salvá-las. 

E ainda assim, ali estão eles, os pacotes entregues, o rosto cansado já pensando na próxima corrida que terão de fazer. A coragem nascida do desespero -  e ainda ter de ouvir impropérios ao longo sua jornada de trabalho!

- Vai aprender a dirigir, motoboy lixo!

- Cuidado com esse portão, esse motoboy tem cara de bandido...

- Se não entregar em meia hora, vai perder o pagamento dessa corrida!

A verdade é que falhamos com estas pessoas,  por forçá-los a realizar um trabalho mais perigoso o que nunca hoje em dia, por nem sequer considerar que o pagamento por isso é o mínimo ou abaixo disso. Eu mesmo sou culpado nisso, nenhuma gorjeta que eu dê a mais para o motoboy que me traz minha comida vai resolver este grande problema que lhe absorve, embora certamente seja apreciada e você também deveria dar se puder.

À guisa de reparação, escrevo estas mal traçadas linhas e mando uma saudação aos  entregadores, aonde quer que estejam neste momento, com quaisquer que sejam seus pacotes. Sigam em paz, perdoem a nossa falha em deixá-los assim, e que num mundo pós-pandêmico nós possamos trabalhar juntos, e tornar o mundo mais suave para vocês e para todos. Um mundo forte e conectado.

PARA OUVIR: Baker Street 

PARA LER: O Padeiro


Crônicas da Cidade Pandêmica: Paranoid

(Fonte: Site Shutterstock)

E de repente, não mais que de repente, eu me sinto ansioso com o mundo. Não é algo que seja realmente incompreensível: de fato, nos dias de hoje, não sentir alguma coisa errada em si é que caracteriza um problema psicológico, ao contrário do que digam por aí.  Aliás, existem tantos semi-deuses andando por aí, inabalados pelo seu entorno, que é difícil até pensar em admitir ser humano, demasiadamente humano. Ou talvez o que haja sejam hipócritas mesmo - vai saber.

É errado de minha parte dizer que a ansiedade veio com a pandemia. Na verdade ela é uma velha inimiga, à espreita nas sombras, esperando o momento certo para dar o bote. Começa como um pensamento insistente - será que tranquei a casa direito ao sair? Será que conseguiremos pagar todas as contas esse mês? - e aos poucos, ele vai tomando a mente e o dia todo. Se você não tomar cuidado, ele toma toda boa parte de uma semana, ou mesmo bem mais tempo que isso, dependendo da sua estrutura para aguentar.

Aí vem o choro (de raiva, de impotência), a sensação de esmagamento na cabeça (no meu caso, bem ali na nuca), às vezes um formigamento... receita perfeita pro desastre em um ambiente que pode-se sair às ruas, dirá em um momento de isolamento social. Nisso, uma vez mais sou abençoado com a companheira dos sonhos - que me acolhe em seu colo, entende minhas lágrimas, me nina até eu me acalmar. Também eu faço isso por ela, quando o mundo lhe exige mais que o razoável. Acredito que isso seja o que um casal deva fazer em tempos de crise -e se não for, bem, é o que eles DEVERIAM fazer.

Mas eu toquei nesse assunto, porque me parece cada vez mais as pessoas tem sentido o peso da quarentena, e a sensação da ansiedade deve pesar forte em suas cabeças. A respeito disso devo dizer: não se sintam mal. Se há um momento para estarmos ansioso, é esse. Não prestem atenção nos semideuses, preste atenção em si mesmo. Permita-se sentir, mas não se permita levar pela onda maligna. Chore, se tiver de chorar: cada lágrima, um conforto mais próximo. Depois respire, olha para o céu, e pense no que o espera não em um mês, um ano, um dia e sim em algo bom para fazer em um minuto. Cada avanço na nossa vida, é montado minuto a minuto, "polegada a polegada", parafraseando Al Pacino. Permita-se percorrer estas polegadas, e não se culpe por tropeçar nas pedras do caminho.

Rumo ao fim disto tudo, amigos.


PARA OUVIR: Paranoid

PARA LER: Litania contra o medo





quinta-feira, 9 de abril de 2020

Crônicas da Cidade Pandêmica: Helden


(Doctor, de Nikolai Plastov)


Vejo nos jornais as notícias sobre o avanço do vírus, e é difícil não se sentir vulnerável. Ainda mais eu, que estou no grupo de risco: desde sempre com problemas respiratórios, um de meus maiores pesadelos é justamente morrer sufocado, o ar sumindo dos pulmões e a sugada desesperada por mais, sem que o pulmão possa absorver o suficiente para a vida.

Lembro-me de quando era criança, e tive uma das crises mais poderosas de asmas que jamais tinha sofrido. Foi um momento tenebroso, e lembro ter ficado certo que aquela vez eu realmente iria partir deste mundo. Não seria a primeira vez que eu pensaria isso ao longo da minha vida, mas naquela vez eu tinha por volta de 11, 12 anos. Um romântico de segunda geração precoce, digamos.

Naquela hora atroz, eu lembro perfeitamente de três coisas: minha mãe tentando segurar suas lágrimas, eu fazendo uma piada idiota ao meu irmão mais novo imitando Darth Vader (o respirador que eu usava fazia um som parecido ao do vilão), e o médico que me olhou no fundo dos olhos, e disse: você vai voltar bem para casa hoje.

Essas palavras vindas de um profissional da saúde me marcaram profundamente, porque ali eu vi a certeza, eu vi a segurança, E desde então adquiri um profundo respeito pelos profissionais da saúde e a medicina, apesar de alguns que conheci durante a vida serem uma desora à profissão. Mas eu sempre os vi como esses arautos da segurança. A pessoa de branco que olha para você e diz: tudo vai ficar bem.

Nem posso imaginar o choque e caso que nossos profissionais da sáude tem enfrentando nesses dias sombrios. As histórias que ouço são coisas escabrosas, mortes em nível de guerra, dias e noites  em claro lutando contra o vírus letal. É a definição do bom combate: não um conflito para tirar vidas, mas sim para salvá-las. O preço cobrado é alto demais, demandante demais, e ainda por cima mal recompensado, se os relatos de agressões aos médicos e enfermeiras que tenho lido tristemente forem verdadeiros. No entanto ali vão eles, a linha de frente no combate à peste e seguindo seu juramento à risca, coisa rara nos dias de hoje.

Há muito o que se escrever sobre esses bravos indivíduos, e creio que mais de uma vez voltarei ao assunto aqui. Por hora, que esta pálida crônica seja uma forma de homenagear estes trabalhadores da saúde, que não veem sua família a dias talvez, que choram sozinhos ao perder um paciente, que não desistem em momentos que muitos já teriam partido a tempos. A eles, mais que um mero obrigado, segue aqui a gratidão eterna de um doente crônico, que acreditou no doutor, e realmente conseguiu voltar para casa bem.

PARA OUVIR: Heroes

PARA LER: Juramento de Hipócrates 

quarta-feira, 8 de abril de 2020

Crônicas da cidade pandêmica: I got you, babe

(Fonte: Getty images)
Acredito que não seja segredo para ninguém que ficar trancado em casa sem possibilidades de sair, seja uma tarefa mais difícil do que parece. Para começar, a própria probição de sair parece dar no indivíduo a vontade ainda maior de descumprir a quarentena, já que o ser humano é antes de tudo um rebelde, pelo que parece. Talvez seja isso que acomete tantos idosos que vejo andando nas ruas ainda: a certeza de que já viveram o suficiente para poderem fazer de si o que bem entenderem. É um erro que pode ser fatal, como muitos exemplos tristes tem demonstrado, mas ainda assim é algo humano, demasiadamente humano.

Resta aos que seguem rigorosamente o isolamento buscar atividades para fazer em casa, depois de cumprida a jornada home office do dia. Antes haveria uma caminhada no parque mais próximo de sua casa, ou quem sabe uma caminhada rápida para lanchar no fast-food  mais próximo, a junção máxima de exercício e recompensa errada. Isso tudo foi trocado, pelos próximos dias (meses?), pelo delivery acanhado tentando evitar a máximo o contato físico, e pela corrida rápida dentro da própria sala, de um lado pro outro - ou talvez uma volta rápida ao redor do prédio onde se mora, se tiver sorte.

Aqui em casa, as coisas tem sido um pouco mais tranquilas, quanto mais não seja porque somos um casal um tanto caseiro. De fato, a maior parte das atividade que fazíamos antes continuam as mesmas, embora algumas tenham aumentado em intensidade. Por exemplo, a completa perplexidade na idiotice do presidente no poder, um hobby nacional desde pelo menos 2019, aumentou em pelo menos 50% em força, e agora é acrescido da saudável expurgação desta raiva através de xingamentos gritados da varanda do apartamento. Apesar do que possa parecer, é uma atividade bem calorosa, com participação ativa da vizinhança. Provavelmente foi a primeira vez que eu interagi com a nossa vizinhança de uma maneira  mais lúdica e ativa.

Outras atividades menos comunitárias tem seguido também seu curso: séries, filmes, conversas ao anoitecer, músicas. Mas principalmente, e essa talvez seja a melhor de nossas ações juntos, continua também aquele momento que, sem dizer nada, seguimos para alguma janela e olhamos o céu em silêncio, e sentimos o vento (às vezes frio, às vezes cálido) da cidade. Não sei dizer exatamente o que ela pensa: as divagações de um indivíduo são um conforto privado que não devem ser esmiuçado à toa. Mas sei que também eu tenho cá os meus pensamentos, e naquele momento  isso nos basta. E sonhamos e olhamos juntos para o horizonte, longe de tudo que nos aflige, voando tranquilos com o vento que nos afaga o corpo.

PARA OUVIR: I got you Babe

PARA LER: Sopra o Vento, Sopra o vento

terça-feira, 7 de abril de 2020

Crônicas da Cidade Pandêmica: Heaven in a Wild Flower


Em tempos incertos, o mais ideal seria buscar em si uma certeza, uma plataforma para tentar sobreviver. Mas e quando mesmo o seu lugar interno é carregado de incertezas? Aí vem a grande busca, o conhecer-se a si mesmo. 

Confesso que este é um tema um tanto espinhoso para mim; sofro de incertezas até do que deveria ser fato consumado em minha vida. Nunca acreditei na durabilidade de coisas boas, fossem elas aprazíveis ao corpo, mente ou espírito. Na verdade, por anos eu nem sequer acreditava na existência em si de emoções lindas que muitos tomam como parte integrante da existência.... foi preciso conhecer ELA, a mulher a quem tenho o priviléigo de chamar de esposa, para que eu pudesse cogitar que merecia ser feliz. Mas isso é assunto para outro momento. 

Por anos, a ideia de um mundo frio e incolor era para mim a realidade, até um dia eu enxergar as cores e a vida ao meu redor, um daltônico emocional de repente curado. É justamente nesse momento do ápice das descobertas, o mundo surge para se reafirmar gélido e implacável, com a Covid-19 funcionando como o argumento final desta visão. 

Mas não é possível que deixemos este vírus destruir nossos corpos e espíritos ao mesmo tempo, que esses momentos atrozes sejam a nossa regra e não a exceção monstruosa. Não podemos nos deixar demolir tanto pelo corona quanto pela absoluta soberba e ineficácia do atual presidente do Brasil, um homem que é em si uma doença sobre duas pernas, ameaçando diariamente nossa salubridade mental. É preciso resistir, é necessário crer num momento melhor, além deste tão terrível que estamos vivendo, e outros piores que ainda virão. Um dia, além da fumaça da História em curso, poderemos todos descansar e olhar atentamente as cores ao nosso redor, sem medo, sem raiva, em paz. 

Afinal, como disse um certo sábio inglês a mais de 30 anos atrás: O inferno é algo que carregamos conosco, e não um lugar para onde se vai. Larguemos portanto este inferno que nos pesa as costas e embrulha o estômago, e criemos em nós mesmos um paraíso. Faça-se a luz.


PARA OUVIRPanoramic




segunda-feira, 6 de abril de 2020

Crônicas da Cidade Pandêmica: Olhai os lírios do campo

(Fonte: onegreenplanet.org)

Dia sim, dia não, eu e minha esposa saímos do nosso apartamento para dar uma volta. Antes que voem as pedras em nossa direção: não estamos saindo nas ruas para nenhuma aventura pandêmica. Acontece que moramos em um condomínio no coração do Rio pequeno, e somos afortunados deste mesmo lugar ter espaço suficiente, por trás de muros e portões fechados, para caminharmos e tomarmos um sol, algo que nem nos dávamos conta do quanto era importante e que agora, privados de poder sair normalmente, sentimos necessidade de ter. 

Caminhamos conversando sobre as atividades do dia, sempre atentos a possível presença de mais algum morador mais a frente, algo que se ocorrer resulta numa estranha e triste dança, onde cada um dos envolvidos tentar desviar o mais longe possível do outro, andando lentamente em passos envegonhados mas resolutos. Em nossso rosto, o sorriso sem graça que diz "Me desculpe, mas não posso arriscar". É algo melancólico de se ver, essa pantomina,e mais ainda se torna quando vemos no rosto da pessoa a vontade de dar um bom dia, ou de sacudir as mãos num gesto cordial. Que nunca mais se diga do paulista como um ser anti-social: vi de primeira mão que a fome de contato neles é tão grande quanto de qualquer brasileiro. 

Como desviamos (precisamos desviar...) de nossos vizinhos e companheiros de peste, nossa principal companhia nessas breves caminhadas são o céu azul, as plantas e as árvores de dentro do condomínio, pois há muito tempo decidiu-se que aqui não haveria só o cinza, mas também um pouco de verde. Decisão essa mais que acertada, ainda mais em tempos como os atuais. E veja só, quão exuberantes elas estão! O céu decidamente mais azul, as plantas vívidas com insetos e abelhas as quais não me recordo ter visto antes. Bem ali, as árvores, estas velhas guerreiras de uma batalha de resistência contra o avanço destrutivo da força a que chamaram progresso: pois estas mesmas agora balançam serenas, ao sabor de um vento que não carrega por hora, o fedor da poluição trazida pelos ônibus e carros em excesso. 

Longe de mim repetir aqui a velha frase pessimista, que os aponta como "vírus" que destroem o planeta. Não acho que isso seja necessariamente verdade. Creio que também nós somos parte dessa exuberância, mas talvez tenhamos escolhido esquecer disso por húbris. Porém, quando penso na dor que sentimos ao nos afastarmos de nossos semelhantes, e lembro que não temos nem sequer um incômodo ao ver o ambiente ao nosso redor se esvaindo, me pergunto se estes dias tristes poderiam nos fazer pensar um pouco mais a respeito disso, da nossa ideia do que é parte integrante de nós mesmos. 



domingo, 5 de abril de 2020

Crônicas da Cidade Pandêmica: Fugere Realitas


O velho Braga chamava a TV de "máquina de amansar doido", discordando do velho adágio de Stanislaw Ponte Preta, que a chamava de "máquina de fazer doido". Ele dizia que muita coisa seria perdoada à TV pelo seu papel de companheira dos solitários, nas grandes madrugadas sem fim do mundo afora ; acreditava realmente no papel redentor do aparelho como aconchegador dos perdidos. Era, antes de tudo, um otimista, que não chegou a ver o que a televisão tinha de pior para oferecer: as grandes guerras de audiência valendo qualquer coisa, as notícias "mundo-cão" virarem a regra e não a exceção.... Por vezes me pergunto o que ele teria achado de tudo isso. Talvez desse um longo suspiro, e lamentasse uma vez mais o fim do toque humano na sociedade em geral. Talvez mesmo, enchesse seu peito e falasse em tom de lamúria:

- AI DE TI, MUNDO! 

Ou talvez minha imaginação esteja mais a mil que nunca, nestes momentos. Francamente, é difícil dizer. 

Mas falávamos de TV, e acho que hoje em dia devemos também falar da neo-TV, a grande internet e seus sites de streaming de programas, que nos servem de contraste e consolo ao mundo sombrio lá fora. Todas as séries, filmes, shows que vemos, servem-nos com um bálsamo da alma, que está confusa e ferida pela atrocidade da realidade. Aqui em casa, os shows são da mais variada espécie: receitas, entrevistas, aventuras místicas, mistérios, doramas japoneses.... Não há bem uma regra, é muito mais baseado no que estamos sentindo ou querendo sentir naquele momento específico. São programas de todos os cantos do mundo, em todas as línguas que houverem... não importa muito, desde que falem a mesma linguagem que a de nosso coração quarentenado. 

É claro que há nisso um escapismo. Evidente que nada do que vemos ali vai nos deixar um passo mais próximo da cura, ou irá nos ajudar a superar os problemas que virão depois, no mundo pós-pandemia.Nenhuma história na tela da TV ou computador que usamos -nenhum dos heróis e vilões, nenhuma da tramas mirabolantes ou realistas, nem mesmo o julgamento seríssimo da qualidade de um doce - fará mais do que diminuir um pouco a longa vigília que fazemos por hora em nossas casas. 

Mas quem disse que buscamos algo mais do que isso? 

Talvez simplesmente queiramos entender melhor o sofrimento da mocinha ali na tela, porque não queremos - não temos forças - para pensar no nosso próprio sofrimento, ou no futuro incerto que se avizinha. Talvez ver o herói vencer o vilão seja uma coisa boa de se ver de vez em quando, pelo menos ali na série. E nesta dança de fuga da realidade (temporária, posto que tem hora para acabar), talvez possamos por alguns momentos voltar a ser aquela criança sentada em frente à TV, com os olhos fascinados em algum programa, e vivendo sem saber as manhãs de sábado do nosso passado além dos tempos, além de tudo. 






sábado, 4 de abril de 2020

Crônicas da Cidade Pandêmica: Like wind to fire



Sou afortunado por estar em quarentena com uma mulher que é minha parceira de vida, com quem divido minhas dores e os absurdos cada vez mais frequentes da vida. Nosso dia-a-dia, diferente de tantos que tenho ouvido falar, a bem da verdade não se alterou muito, pelo menos no que se refere à nossa vida caseira. Vemos séries juntos, ou filmes; conversamos e rimos de algum assunto que esteja no ar; lemos juntos sentados no velho e bom sofá preto de 3 lugares, presente de minha querida sogra.

É claro que não é exatamente como antes do Covid-19. Cada uma dessas ações é temperada pela ansiedade e medo, ainda mais quando se aproximam o anoitecer e a hora da notícias cinzas: nesses momentos o tom que adotamos é sóbrio e talvez um tanto fúnebre. É difícil manter a leveza com tantas coisas acontecendo ao mesmo tempo, e o stress dessa sobrecarga já se fez sentir mais de uma vez aqui em casa. A intoxicação pelo excesso de notícias péssimas é uma realidade que já existia antes da pandemia, e que só fez se agravar agora.

Enfrentado de maneira solitária, isso poderia ser um destruidor mental, mas tudo é muito melhor suportado porque temos um ao outro em meio ao caos deste mundo, e no colo de cada um encontramos nossa fortaleza. Mas e os que não tem essa sorte? Entre meus amigos virtuais, vejo uma reclamação constante de solidão. Alguns lamentam a distância da Pessoa Especial de suas vidas, muitas vezes milhas e milhas distantes, parafraseando Evandro Mesquita; outros queixam-se que a quarentena os impossibilita até  de buscarem um alguém nestes momentos de distanciamento social. É o amor nos tempos da praga: onde antes o físico reinava supremo, agora vence o etéreo. As pessoas estão tendo de (re)aprender a arte do encantar pelas palavras, como nos tempos das juras de afeto além-mar, das mensagens vindas do front de guerra longínquo.



É claro que, como naqueles tempos, há uma certa dose de hipocrisia em alguns casos: da mesma forma que alguém entrega seu corpo ao prazer de mais dois ou três que pensam ser o único, este mesmo alguém despeja seu falso lirismo em duas ou três cartas, trocando uma leviandade física por outra mais espiritual - talvez até mais séria que a falta anterior, se pensarmos bem. 

Mas e os sinceros, o que buscam um único elo neste momento? A estes, resta reconectarem-se com a fina arte das cartas de afeto e amor, se quiserem algo mais concreto que uma foto nua - que tem seus divertimentos, mas pouco uso em preencher o vazio interno de um indivíduo. Já com as palavras certas... quanta diferença! Em cada frase, um pedaço de uma ponte em direção ao coração do ser desejado/amado. Que importa se a distância existe, se o encontro ao vivo, num futuro lá longe, trair todas as expectativas criadas nos tempos do isolamento? Neste momento, duas pessoas conseguem se conectar e ajudar uma a outra a acreditar mais em algo. E isso pode fazer toda a diferença. 


PARA ESCUTARBuilding Bridges

PARA LERLove is a place

sexta-feira, 3 de abril de 2020

Crônicas da Cidade Pandêmica: Overture


Fazem hoje dezessete dias que estamos de quarentena aqui em casa. É um pouco menos para as pessoas lá fora, na cidade de São Paulo. Acho que dez dias, pelo menos oficialmente. A quarentena não está abarcando todos: lá fora, vemos ainda os trabalhadores entendidos como essenciais, arriscando suas vidas desbravando ruas infectadas, para garantir a sustentação de si mesmo e de um sistema que muitas vezes nem ao menos lhes agradece pelo esforço. A distopia já está aqui, apenas estamos nos acostumando com ela pouco a pouco, como quem se despe lentamente antes de adormecer.

Muitos reclamavam que não podiam sair de suas casas; agora acho que nem reclamam mais tanto sobre isso. As coisas crescem vertiginosamente, e a insegurança sobre o que fazer é enorme. A toda hora na TV o número de infectados cresce, as notícias pioram. Tentamos nos distrair com séries, livros e afins, mas todos falam de um mundo aonde esta atmosfera de morte não era nem sequer considerada. A fuga é uma falha, porque nem ao menos nos distrai direito do que acontece lá fora.

Alguns outros diziam-se acostumados com a solidão caseira, e portanto sentiam-se prontos para o longo confinamento. Os dias mostraram que isso não era bem verdade. O ser humano é movido pelas privações; o que ele não pode obter em um momento  torna-se seu principal desejo mais profundo até o fim. E neste momento, mesmo os mais introvertidos anseiam pelas caminhadas nas ruas, ainda que ali pertinho para comprar o pão, ou mesmo aquela caminhada rápida para um remédio de gripe (também demonizado agora, como tantas outras coisas).

Escrevi estas palavras pensando em terminar com um tom otimista, mas não creio que eu possa. Seria um desrespeito ao momento que vivemos, um tapa na cara dos médicos e profissionais envolvidos em sua guerra mundial, ferindo seus corações com os horrores acontecendo neste exato momento. O que eu posso fazer - o que eu sempre me comprometi minha vida toda - é falar do que acontece por aqui, ao meu redor, ao longo dos dias Talvez eu esteja escrevendo mais para mim que para qualquer outro leitor que apareça - eu não me importo, navegar foi preciso, escrever é necessário. Um dia, ali na frente, não riremos disso tudo. Mas não podemos só esquecer, eu me recuso a isso. Essas crônicas são o caminho triste que você pensa em seguir mas acha melhor não, para não se desanimar. Mas ele ainda assim existe, e sempre estará aqui.