sexta-feira, 3 de abril de 2020

Crônicas da Cidade Pandêmica: Overture


Fazem hoje dezessete dias que estamos de quarentena aqui em casa. É um pouco menos para as pessoas lá fora, na cidade de São Paulo. Acho que dez dias, pelo menos oficialmente. A quarentena não está abarcando todos: lá fora, vemos ainda os trabalhadores entendidos como essenciais, arriscando suas vidas desbravando ruas infectadas, para garantir a sustentação de si mesmo e de um sistema que muitas vezes nem ao menos lhes agradece pelo esforço. A distopia já está aqui, apenas estamos nos acostumando com ela pouco a pouco, como quem se despe lentamente antes de adormecer.

Muitos reclamavam que não podiam sair de suas casas; agora acho que nem reclamam mais tanto sobre isso. As coisas crescem vertiginosamente, e a insegurança sobre o que fazer é enorme. A toda hora na TV o número de infectados cresce, as notícias pioram. Tentamos nos distrair com séries, livros e afins, mas todos falam de um mundo aonde esta atmosfera de morte não era nem sequer considerada. A fuga é uma falha, porque nem ao menos nos distrai direito do que acontece lá fora.

Alguns outros diziam-se acostumados com a solidão caseira, e portanto sentiam-se prontos para o longo confinamento. Os dias mostraram que isso não era bem verdade. O ser humano é movido pelas privações; o que ele não pode obter em um momento  torna-se seu principal desejo mais profundo até o fim. E neste momento, mesmo os mais introvertidos anseiam pelas caminhadas nas ruas, ainda que ali pertinho para comprar o pão, ou mesmo aquela caminhada rápida para um remédio de gripe (também demonizado agora, como tantas outras coisas).

Escrevi estas palavras pensando em terminar com um tom otimista, mas não creio que eu possa. Seria um desrespeito ao momento que vivemos, um tapa na cara dos médicos e profissionais envolvidos em sua guerra mundial, ferindo seus corações com os horrores acontecendo neste exato momento. O que eu posso fazer - o que eu sempre me comprometi minha vida toda - é falar do que acontece por aqui, ao meu redor, ao longo dos dias Talvez eu esteja escrevendo mais para mim que para qualquer outro leitor que apareça - eu não me importo, navegar foi preciso, escrever é necessário. Um dia, ali na frente, não riremos disso tudo. Mas não podemos só esquecer, eu me recuso a isso. Essas crônicas são o caminho triste que você pensa em seguir mas acha melhor não, para não se desanimar. Mas ele ainda assim existe, e sempre estará aqui.






3 comentários:

  1. Sabias que já pensei em escrever,como se fosse um diário,nesses dias de cor cinza que o mundo está vivendo?Ainda não consegui.Teu texto diz MUITO do eu penso no momento é como se eu tivesse escrito junto contigo, obrigada por fazer com que um pouco de minhas palavras tenham pulado pra fora de meu peito.

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  2. "O ser humano é movido pelas privações; o que ele não pode obter em um momento torna-se seu principal desejo mais profundo até o fim"
    Desde a história bíblica que diz que Eva não resistiu à tentação e provou do fruto proibido, nós também temos sempre muitos frutos proibidos que despertam vontades. No atual momento devemos agir com muito mais prudência e consciência, não apenas por nós, mas por todos. Tivemos a triste experiencia de ver o que  aconteceu e continua a acontecer em outros países, que não optaram pelo imediato isolamento social. Que nunca esqueçamos que  teremos que viver com a consequência de nossas escolhas.

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  3. " E neste momento, mesmo os mais introvertidos anseiam pelas caminhadas nas ruas, ainda que ali pertinho para comprar o pão (...)"
    Nesse momento você me capturou. Fui no caixa eletrônico e quase volto andando. só pela liberdade do ar puro...

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