terça-feira, 21 de abril de 2020

Retrato na Cidade Pandêmica: Suzette Salomé

Head of a prostitute, por Vincent Van Gogh

"Me chamam de 'puta' por todo lado que eu vou, até meus clientes me chamam assim. e no entanto, quem sabe quem eu sou?

Não eles nas ruas, julgando em cada olhar. Desejando também, aposto, esses hipócritas.

Não minha família, que me expulsou de casa quando eu tive a coragem de aceitar quem eu era de verdade, mulher, não homem como meu pai queria, como minha mãe rezava pra eu ser (e nunca parou de rezar, eu sei).

Nem mesmo minhas amigas aqui nesse inferno, que me consolam quando as coisas apertam, e me dão um tapa na cara quando eu tenho que levantar e ir pra luta. Vivemos com a família que nos aceita; o sofrimento une mais que o sangue. E ainda assim, nem elas sabem.

O ponto que a gente trabalha fica perto de uma faculdade aqui da capital, faculdade de riquinho, cheia de filhinho de papai. Eles vem muito aqui, mas não só eles: tem executivo, homem de escritório, bancário, pastor de igreja.... carros de ricos e de pobres, gente curiosa, gente maldosa.... 50 reais o programa, esse é o valor mínimo aqui.  Às vezes mais, se o cliente quer uma coisa diferenciada, mas aí depende muito, de quem é, se a gente já conhece.

Dizemos para meninas mais novas, olha, cuidado, olha bem com quem tu vais, pra onde tu vais.... São mais de 5 anos nessa lida né. E eu já passei por muitas dores, então tento evitar que elas passem por algo parecido. É difícil: o desespero leva a gente a aceitar umas coisas terríveis. A gente aceita de acordo com o que a gente precisa para sobreviver.

O movimento caiu depois da pandemia, confesso. Caiu, mas não zerou. Ainda bem, porque senão como que eu ia comer? Faço agora o programa por 30 reais; as outras meninas também, porque senão aí que não conseguimos mesmo nada. Mas tá complicado demais, algumas de nós não podem mais nem ficar na rua com isso tudo.... A Alice, por exemplo, tá com 55 anos e nem consegue ficar em sapato de salto alto mais, dói muito o calcanhar, ela fica que não consegue trabalhar por uns dois dias. Aí ela vem de rasteirinha, mas todo dia tem doído. E os clientes dela são tudo gente mais velha, e esses não tem aparecido por aqui, só um ou outro velho assanhado que fugiu da quarentena que surge, aí ela consegue um trocado.

Nós moramos juntas, todas nós, numa vila aqui perto do ponto,uns kitnetzinhos mobiliado, algumas rachando, outra com um só para si. A gente tem rachado os lucros pra comprar comida, mas não sabemos quanto tempo ainda vamos conseguir. Final do mês tá chegando, o aluguel vem com tudo, e cadê o dinheiro? Ninguém sabe nem como vai comer no dia, imagina ter o dinheiro todo da moradia. Aí  tem que ir pra rua né, e se arriscar com doença. Mas a gente sempre se arrisca, todo dia. Ninguém vai fazer por nós, é só  nós mesmo.

Não me olhe assim. Vá à merda com a sua piedade. Eu quero ela pra que? Aposto que você tá pensando,  coitada da putinha, tá pegando chuva, tá tentando viver... vá à merda com com isso tudo. Sabe o que eu quero? O que nós queremos, eu e as meninas? Que não saiam pisando na gente toda vez que saírem na rua, quando saírem deposi disso tudo. Porque pisam sim, não com os pés, mas com esse olhar aí que julga, que condena.

Como se você soubesse de tudo que passei. Não tem nem ideia do quanto tentei arrumar outra coisa, outro emprego, pra sair das ruas. E as portas fechadas, a zobaria, porque ninguém que contratar bicha fodida. Você não sabe disso, não sabe do quanto eu choro de madrugada, no quartinho encardido, pensando nos meus irmãos que eu nunca mais vou ver, nem sei por onde estão, meus pais esconderam eles de mim. Penso tanto neles, tanto... mas não nos meus pais. Esses quando eu penso neles, não sinto saudades, só dor.

Mas você não sabe nada disso, e nem tem como saber, não daí de onde você me olha.

Você nem sabe meu nome,

Mas eu sei. "



PARA OUVIR: Me llaman Calle

PARA LER: Coronavírus não interrompe prostituição a R$ 30 no centro de São Paulo

2 comentários:

  1. Bela referência a Salomé. Ja havia pensado nelas também- nossas ancestrais- e em como elas estariam vivendo em meio a tudo isso. E e esse texto exemplifica bem! Thanks

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