terça-feira, 7 de julho de 2020

Crônicas da Cidade Pandêmica: Aqui, ninguém vai pro Céu


Hoje minha mãe, uma grande professora de português e literatura, passou para seus alunos uma versão da música consagrada de Criolo, "Não existe amor em SP", com ele cantando junto com o Milton Nascimento. Uma canção belíssima, ainda mais nesse bate-bola entre dois cantores excelentes. Recomendo muito que se busque e ouça profundamente, de olhos fechados, numa sala escura.

Quanto a mim, eu já tinha ouvido essa versão antes. E a canção original também, anos atrás, em um kitnet numa rua no coração do Butantã.

Eu estava em São Paulo, sozinho, e era o primeiro inverno que eu passava de verdade. Entenda, na minha terra natal, "inverno" é mais uma questão filosófica, que física, real. A Amazônia só conhece períodos de mais ou menos chuvas, não o frio intenso, de Julho, que vem enganador com seus 17, 18 graus de manhã, e seus 2, 3 graus na madrugada. Muitos podem dizer que isso não é frio de verdade: eu posso dizer que não me importo com o que acham. Era frio para mim, e é isso que importa.

Então, eu ouvia músicas aleatórias,e encontrei "Não existe amor em SP". O Kitnet era frio e pqeueno, então o som ecoou por todo o espaço. Naquele dia, eu acho que encontrei a melhor explicação para o que eu sentia, para toda minha solidão. A música se tornou uma espécie de hino mental: eu a ouvia em minha cabeça quando pegava ônibus, quando estava andando nas ruas, quando caminhava para estudar na USP. 

Tempos depois, conheci minha esposa, e me pareceu que eu exgerava um pouco sobre como São Paulo era. Até conhecê-la, eu creio que não acreditava em pessoas que fossem, de fato, preocupdas com coisas mais suaves - pelo menos não do jeito que ela o faz. Conheci Aline e me apaixonei: e então, para mim, a música não fazia mais sentido. Existia amor em SP.

Fui um tolo, é claro. Porque Criolo não está falando de indivíduos; ele está falando da cidade em si. Da alma da cidade, do que agita a grande massa que anda nas ruas, que a faz agitar-se, agir. E a última coisa que passa pelo coração dessa massa é amor. Como pode existir amor em SP, com pessoas morrendo de frio nas ruas?  Com tantos clamando pela reabertura sem a menor preocupação com as mortes , com cuidados para evitar as mortes? Uma cidade que elegeu um prefeito que teve como atitude molhar os moradores de rua, no inverno, com jatos de mangueira?

Aqui é a cidade sem coração. Os pobres são degraus de riqueza para os ricos, ninguém sequer se importa se eles morrem ou não. Ou você acha que os números de casos de corona na região mais pobre importam para os mais ricos? Evidentemente que não, porque senão haveria um esforço maior da própria sociedade para ajudar essas pessoas. Ao contrário, elas são impulsionadas à morte - e por isso, mergulham na dança do desespero para não pensar no que se envolvem todo o dia, só para sobreviver. A classe média, na qual estou incluso, não está à salvo: somos apenas mandriões chorões, lamentando a falta de humanidade das pessoas, ou somos aspirantes a uma riqueza que amais chegará, porque compramos a ideia da meritocracia, a pior cenoura já criada para fazer cavalgar um cavalo chucro.

Está é São Paulo. Venha nos visitar, temos sanduíches, lojas, e mortos por descaso. Mas é só não olhar para eles que fica tudo bem, se duvidar dá até para fazer o selfie e editar depois o morador de rua esfomeado lá no fundo.

Um comentário:

  1. Agora ainda mais,tempo de pandemia, é evidente a falta de amor.Bela crônica .

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