sábado, 31 de julho de 2021

Crônicas do Novo Normal: Die Kälte


" Um dia frio/ um bom lugar pra ler um livro", diria Djavan, e no entanto quem consegue ler com a mão gelada de segurar o livro? É uma pergunta de retórica: É claro que muitos conseguem, mas que sofrimento nos dedos! 

É engraçado como nossas visões de mundo mudam tanto ao longo de nossa vida. Lembro dos meus tempos em Belém do Pará, e o sonho do verdadeiro frio. Ali, uma temperatura de 26 graus já é ra~zao suficiente para as pessoas tirarem dos armários os agasalhos que comparam em alguma viagem ou ganharam de presente de algum parente de alguma terra com um inverno apropriadamente gelado. Na Amazônia, inverno só quer dizer mais chuva que o normal.

Assim, quando me mudei para São Paulo, fiquei pensando que agora sim, finalmente iria ver.... neve. Parece tolice, mas eu realmente acreditava que a Pauliceia Desvairada tinha neve... coisas de menino do interior, suponho. Apesar disso, ainda me lembro muito bem do primeiro inverno que passei aqui: certa noite, acordei gelado na kitnet que morava, soprando a famosa "fumacinha" de frio. A experiência me marcou tanto que comprei um fiel aquecedorzinho, que serve à minha casa até hoje.

De lá pra cá, já enfrentei muitos invernos por aqui, e cada um tem me parecido diferente do outro, mas sempre com características bem parecidas: o doer dos pulsos na intensidade do frio, os pés que ficam gelados sem cessar, o festival de descongestionantes... esses aliás, que tenho diminuído, mas que com certeza são presença marcante na vida de todo alérgico de Sampa - quanto mais não seja, porque a poluição no ar sem chuvas acaba afetando a nossas pobres narinas ainda mais nesses dias gelados. 

Apesar de tudo, é claro que minha "dor" não é nada perto da experiência das pessoas que estão em situação de rua. Hoje mesmo padre Júlio Lancelot contou de um senhor de idade que salvou do frio desta quinta feira, quando os termômetros marcaram agoniantes menos de cinco graus celsius. Nestes momentos, pensamos no sofrimento de todos nas ruas, tanto no calor quanto no frio...  chega-se à conclusão que a pior situação não é a estação de ano, e sim ser pobre numa cidade fria e grande como São Paulo. 


domingo, 25 de julho de 2021

Crônicas do Novo Normal: Borba Gato e o Éden perdido

Fonte: Revista Fórum

Ultimamente eu tenho lido muito. Sempre fui um apreciador de livros, mas obviamente por causa da pandemia, o tempo livre para leitura tem aumentado bastante, e eu aproveito isso o melhor que posso. É fato que a maior parte dos textos que eu tenho lido são, basicamente, acadêmicos; tenho trabalhado um pouco em uns projetos de pesquisa que espero realizar nos meses vindouros. Mas também tenho lido muitos livros mais, digamos, ficcionais, e em um deles, chamado Dalva (do escritor Jim Harrisson), me deparei com uma frase que eu gostaria de dividir com você que me lê:

"A Infância é o Jardim do Éden da nossa memória."

Acho que não preciso explicar muito porque essa frase me impactou, dada a auto explicação disso pela qualidade da escrita ali.  Contudo, acho que tenho que discordar um pouco do que o autor falou; è menos a infância, talvez, e mais o passado que é esse Éden perdido, em algum lugar, após nosso pecados nos afastarem desse paraíso - imaginado, talvez, mas nem por isso menos real em nossos corações. 

É engraçado como isso se aplica tanto a pessoas quanto a lugares: por mais deturpado que pareça, a idolatria a um passado glorioso é algo que faz parte de muitos países, regiões, estados. Neste sábado atearam fogo no Borba Gato de Santo Amaro, um "gigantesco boneco a olhar indiferente para a cidade", nas palavras da Folha de São Paulo em 1963, data da inauguração do monumento.

Diga-se o que disser sobre a obra em si - eu particularmente acho a estátua horrorosa - mas é inegável que o motivo dela existir, junto com todas os outros monumentos aos bandeirantes ao redor da cidade e do estado, é essa ânsia de uma glória perdida. Os defensores destas obras, estou certo, sentem que a glória passada é algo que está bem ali, que talvez se nos "esforçarmos", possamos recuperar... e às favas todo o sofrimento humano que ocorreu pelas mãos desses homens, toda a morte e dor que eles causaram. O que vale é a vitória!

São pensamentos perigosos e que podemos argumentar que tem muito peso no caminho que traçamos até o atual desgoverno que temos; e não posso deixar de pensar o quanto isso ocorre em nível individual ao redor do estado, do país, do mundo. Quantas pessoas vivendo de um passado nostálgico, que na verdade foi algo terrível, doloroso? Quantas almas se enganam que as coisas "eram melhores antes", ignorando todo o sofrimento que tiveram? 

Chega do Éden perdido. Sigamos para nosso Êxodus. 

terça-feira, 20 de julho de 2021

Crônicas do Novo Normal: Uma Viagem


Anos atrás, eu e meu avô viajamos de ônibus de Belém para o Rio de Janeiro, e depois de volta para Belém. Esta viagem duraria 3 dias, como creio que ainda seja o caso, se alguém se aventurar a fazer isso logo que a pandemia acalmar. Não viajamos de avião, creio, porque o preço da passagem era bem mais caro que o de ônibus, e meus pais não deveriam ter dinheiro para algo assim. Ademais, naqueles tempos pré governo Lula, era um luxo indescritível viajar de avião, não algo comum como ainda é hoje, apesar de tudo. Nós aqui de baixo da sociedade, cá nos mantínhamos, e seguíamos incólumes e apertados em ônibus pelas estradas destruídas do Brasil. 

A viagem era longa, por certo; e era preciso matar o tempo de alguma forma. Hoje em dia os ônibus tem tvs e coisas assim, mas naqueles dias não havia nada, a não ser a janela e a poeira da estrada para distrair. Meu avô levava um mp3 player (coisa de antigamente, o leitor mais novo provavelmente nem sabe o que é), ouvindo suas músicas. Levava também uma bíblia e algum livro desses que se compra em lojas católicas, ensinando um pouco de catecismo aos fieis. 

Eu também levava um livro, em cada uma das viagens: na ida, eu li "O Poderoso Chefão", de Mario Puzo. Na volta, li "Perdidos na Noite", livro no qual basearam o filme com Dustin Hoffman e Jon Voight. Eu acho que tinha 11 ou 12 anos naquela época, e portanto talvez os livros fossem impróprios para mim. Mas nunca esqueci da viagem por causa deles; até hoje, quando fecho os olhos , consigo lembrar da poeira da estrada, o calor  febril que vinha da janela fechada (pois o busão tinha ar-condicionado: pelo menos um luxo podíamos ter), e as histórias intensas que saíam daquelas páginas. Um dos livros, inclusive, foi comprado durante a viagem, de um homem que vendia vários livros usados em cima de uma toalha, na beira da estrada: mais associado com viagem, impossível!

Pensei nisso esses dias, e não sei dizer o porquê. Talvez seja pelo fato de estarmos isolados em casa, sem poder sair, e meu cérebro sempre associou a liberdade de viajar com esta experiência singular, portanto me fazendo lembrar disso para fugir um pouco da realidade. Talvez porque sinta falta de meu avô: vão contar agora mais de 3, 4 anos que eu não converso com ele, é um homem avesso aos whatsapps da vida, prefere conversar ao vivo e eu não posso ir em Belém do Pará agora, obviamente. Talvez, ainda, seja uma forma da minha mente simbolizar que o que mais quer é pegar a estrada assim que acabar tudo isso.

Não sei: Tudo que sei é que, ainda ontem, sonhei com esta viagem: no sonho, lá fora, não vinha mais um calor como antes, mas chovia muito e sem parar. "Chuva que Deus manda", eu pensei no sonho, e continuei a ler o livro  em minhas mãos com toda a paz que podia. 

quinta-feira, 15 de julho de 2021

Crônicas do Novo Normal: Jamáis Vu


Há dores que não são do que se foi, mas do que ainda não veio. Ou às vezes, do que nem pôde vir. Quantos planos tiveram que ser mudados em nossas vidas por causa da pandemia? Ou, se formos ser realmente honestos, por causa da vida em si? Nem tudo que anda cambaleando de dor em nossas vidas é culpa, necessariamente, do covid; apenas, porque estamos forçosamente parados pela doença ao nosso redor, é que estamos prestando uma atenção elevada à isso. 

Dos planos interrompidos, nós todos sabemos, e acho que temos até uma certa tradição em pensar e considerar estes; afinal, no país onde uma grande parte da música é sobre amores que terminaram, não é de surpreender que sejamos um pouco especialistas nisso. E talvez, porque somos eternamente o país do futuro, tenhamos esta experiência em planos que param no meio. Como uma espécie de país que tem o desenvolvimento interrompido semelhante a alguns jovens de hoje em dia, estamos mudando planos de como vamos "crescer" e "ser respeitados lá fora" de maneira cíclica, ad eternum.

E no entanto, nem é disso que eu estou realmente falando hoje. Porque a dor do interrompimento é quase nada, perto da dor que simboliza o que jamais virá, o que jamais poderá vir, por algum motivo. Ultimamente, essa dor tem sido causada pelas mortes - e talvez ela seja sempre causada pela morte, embora não seja essa a sua causa única. 

Do que se trata esse sofrimento peculiar? Explico: é a ideia do que poderia ser. Quando perdemos uma pessoa, e nos pegamos com uma espécie de saudade não do que aconteceu, mas do que poderia ter acontecido. Uma conversa, um abraço, um momento especial... Uma visita a uma pessoa querida, ou uma ligação para saber como vão as coisas. Tudo isso, como se fossem planos para uma realidade que não tem como existir mais, porque o instante se foi, a pessoa também, e você talvez nem seja mais a pessoa que poderia fazer coisas assim. Talvez você mesmo, caro leitor, seja uma dessas "lembranças". 

E, às vezes, me parece que é isso que temos vivido nesses dias, todos nós no mundo: a saudade do que nunca foi e nunca será. 

sexta-feira, 9 de julho de 2021

Crônicas do Novo Normal: Filosofia Cotidiana


As menores coisas causam os maiores pensamentos. Por exemplo, quantas vezes você não se pegou andando, sei lá, pelo cruzamento da Ipiranga com a Avenida São João, e você do nada sentiu alguma coisa acontecendo em seu coração? Isso são momentos de poesia, de filosofia que seu cérebro causa, e que só precisa de pequenos elementos para poder fazer funcionar. 

Estes elementos podem ser qualquer coisa, e de fato, para a mente que está num ócio criativo quase forçado (já que , apesar das vacinas estarem andando, ainda não temos previsão do fim desta loucura que estamos), o momento pode surgir do nada. Pensamentos poderosos tomam sua mente quando você está à toa, almoçando, lavando a louça, arrumando a cama. Pelo menos comigo tem acontecido: certa vez, me vi considerando a questão da realidade em meio a uma aula de inglês que eu ministrava. É claro que tive que continuar, e não parar tudo para poder considerar o que pensava; não se paga contas com castelos no ar. 

É quase engraçado pensar nisso, porque , confesso, não é algo que seja inédito na minha vida, estas elocubrações-relãmpago: lembro-me muito de diversas viagens de ônibus que fiz, quando do nada, o observar janela afora torna-se uma consideração sobre quem você é de verdade, e quem deseja ser. Por que cargas d'água surgiu aquele pensamento naquele momento? Talvez uma árvore um pouco mais torta tenha me feito recordar do passado; talvez simplesmente o pensamento já estivesse ali e, quando eu parei por alguns momentos, tornei possível ao meu cérebro considerar tais coisas. Não sei: só sei, como diria o filosófo Chicó, que foi assim. 

Em um texto anterior, eu cheguei a considerar sobre isso, sobre a necessidade real que temos de um momento para pensar. Naquele momento, eu achei que era necessário um esforço nesse sentido, porque não seria algo que ocorreria naturalmente; mas agora, com o passar dos dias em isolamento, me pergunto se nossas mentes não estão se acostumando a isso, a pensarem em si mesmas, uma meta-reflexão sobre seus rumos. Me pergunto, verdadeiramente, se isso é algo que está acontecendo com outros, ou se eu (juntamente com algumas pessoas que dividem desta minha aflição) simplesmente desisti do mundo fora de mim, e migrei de vez para dentro da minha própria cabeça.

E você, como está?

domingo, 4 de julho de 2021

Crônicas do Novo Normal: Fantasias Finais


Há algo de romântico, quase nostálgico, ao vermos shows antigos no youtube ou TV ou onde quer que você queria ver essas coisas. No palco, sempre tem uma banda,  em geral dando o máximo de si, e uma plateia cantando os sucessos que pagaram para ouvirem ao vivo. Mas não foi só por isso que elas pagaram: tem muito sentimento ali, muitas lembranças. quer você queira, quer não, as músicas tendem a ser trilhas sonoras pessoais, cada canção uma memória... então, ir a um show deve ser quase que um retorno àquele momento, quando você não era só uma pessoa, e sim um conceito, de felicidade, de tristeza, o que seja. 

Acho que talvez por isso muitas pessoas tenham aquela ligação mais forte com um determinado tipo de música, por mais envelhecida que ela possa ser. Digo isso do alto dos meus 33 anos e fã de rock/pop anos 80: mesmo não tendo nascido naquela época, porque as rádios de minha cidade natal tocavam sem cessar essas músicas (além de technobrega, é claro), elas acabaram se tornando algo como um amigo que me acompanhou desde criança até o momento que saí de Belém, 6 anos atrás. E como se pode abandonar um amigo? Impossível; por isso as playlists do youtube estão cheias de músicas que ouvi atrasadas, e que me fazem sentir algo que eu não saberia nem explicar direito. 

(E também tem technobregas. Possivelmente pelo mesmo motivo.)

Um pouco de nostalgia, me parece, não mata ninguém, e talvez seja até um elemento de força em uma época que cada manhã tem pelo menos 30 fatos que existem só para te deixar mais para baixo. Contudo, há que se tomar cuidado com a nostalgia venenosa, a velha ideia de que "antes tudo era melhor". Hoje em dia é o que mais temos acontecendo, de formas extremas até; recentemente li um artigo sobre pessoas que entraram numa onda de regression, isto é, uma espécie de , bem, regressão ao estado infantil para poder se reenergizar perante o mundo lá fora. Longe de mim julgar, contudo, essa é exatamente a forma extrema que eu falei, uma busca desesperada pela segurança dos tempos de criança, através de meios intensos. 

Acho que talvez isso fale menos das pessoas que escolheram esse caminho do que do mundo que as impulsionou para isso, mas não posso deixar de pensar que esse seja mais um caminho de confundir as coisas, querer encontrar uma sensação e para isso seguir uma prática antiga quejá não faça muito sentido no momento. Assim como as pessoas que vão nos shows ali em cima, essas pessoas podem estar querendo chegar o mais perto possível dos bons momentos do passado... mas será que isso é o melhor jeito? 

Talvez a saída fosse mais buscar esse sentimento de uma maneira mais atualizada; e no entanto, quantas pessoas se perdem até hoje, reencenando cenas de seu passado, buscando a glória e conforto do ontem! Quando você pára de ouvir as músicas antigas e começa a querer se comportar como o adolescente/criança que era quando ouvia aquilo, pode ser o exato momento de parar e repensar algumas coisas sérias.