terça-feira, 30 de março de 2021

Crônicas do Novo Normal: Mindscape


De quando em vez, me pego pensando nos caminhos não trilhados da vida. Não com falsa nostalgia ou por infelicidade em meus dias atuais: sou muito feliz com minha vida agora, vivendo ao lado de uma companheira guerreira e carinhosa, com quem divido dramas e risos já fazem uns bons 5 anos. Não, eu me pego pensando justamente pelo contrário: estou interessado nas milhares de formas que eu poderia ter trilhado um caminho assombrosamente errado, danoso.

Esses eram muitos. As pessoas que me amam não gostam de me ouvir falar isso, mas a verdade é que , seguindo meus desígnios antigos, é muito provável que eu estivesse em uma situação pior do que estaria agora, isso se estivesse realmente em uma situação que eu pudesse me considerar eu mesmo ainda. Pois o caminho que eu escolhi quando saí de Belém do Pará era uma trilha de estudos, mas era antes de mais nada uma trilha de fuga. E depois que eu consegui fugir? Aí, não havia mais objetivo maior, exceto estudar no mestrado, e ver o que o futuro trazia. 

A mente é um lugar lindo para se explorar, mas é terrível se perder dentro dela. E era o que eu estava fazendo em meados de 2015; vagando dentro da minha própria cabeça. Sim, eu saía pela noite, e bebia e buscava companhia, e magoava outras pessoas que só queriam companhia também. Mas acima de tudo, eu estava dentro da minha cabeça, e só queria ficar só ali dentro. Ali, eu não me machucaria; ali, o mundo fazia sentido, porque eu criava o sentido das coisas, por mais torpe que fosse. 

As coisas mudaram muito desde então, é claro. Creio que consegui me salvar o suficiente para seguir outros caminhos, e poder ter a chance de conhecer pessoas maravilhosas, sempre citadas nestas crônicas. No entanto, eu sempre penso no que eu poderia ter feito comigo mesmo, se não tivesse seguido esse caminho. No quanto as coisas pareciam sombrias e estranhamente, tranquilas naqueles dias, quando eu preferia a ilusão da minha mente à realidade fria das ruas de São Paulo. 

Me pergunto quantas pessoas estão assim agora, não por terem se mudado, mas por estarem presas nestes dias infames, onde a morte é cotidiano, onde não se pode ter certeza de como o país estará no intervalo da manhã para a tarde. Quantas pessoas, eu pergunto às ruas vazias, estão tão presas dentro de suas cabeças quanto eu estava naqueles tempos? 

E, por mais contraditório que isso possa parecer, eu também me pergunto: Será que elas não estão melhor ali dentro que aqui fora, conosco?


domingo, 28 de março de 2021

Crônicas do Novo Normal: Questions In A World Of Blue



Hoje finalmente choveu aqui na Pauliceia Desvairada, e o frescor da chuva trouxe o cheiro de vento e terra, e me lembrei de repente da minha Terra Natal. É uma sensação bem ambivalente, diga-se, porque  eu não sou um dos maiores fãs de Belém do Pará: de fato, considero a cidade como uma das mais intolerantes e complicadas de se viver que eu conheço, excetuando-se talvez viver no Sul com seus racismos. Belém carrega em si o mofo da falsa riqueza, de se considerar acima de outras cidades no próprio estado do Pará e de outras cidades na região amazônica. Junto desse mofo, há o horror ao diferente, e tudo que não seja milimetricamente organizado nas caixinhas de ordem que se tem por lá, tende a ser ou massacrado, ou morrer uma morte lenta, definhante. 

Contudo, nem tudo são horrores. Nem poderiam ser né; afinal, vivi no Pará por 27 anos. As memórias mais doces que tenho, porém, tem menos a ver com as pessoas e mais a ver com as sensações; o barulho da chuva intermitente no telhado de casa (agora, casa dos meus pais); o cheiro dos livros antigos na biblioteca do Centur, o centro cultural da capital; a sensação de frescor úmido que se tem quando chove até quase de noite, e você sai andando para ir comprar um pão, ou algo assim. 

Fiquei então pensando, enquanto olhava a chuva cair, nessa dualidade de sensações, de posicionamentos mesmo. Preto no Branco, Bem vs Mal, Água e Fogo; ilusões tão estabelecidas nestas nossas vidas. Tantas coisas que necessitamos desesperadamente pôr em caixinhas, tal qual fazem lá em minha cidade natal - e como fazem muitos acéfalos que desesperadamente precisam de simplicidade torta para aceitarem o mundo, que precisam que haja um Presidente que os guia, que os justifica em sua insanidade negacionista. Pessoas que não conseguem entender a complexidade do mundo. 

Quando se é criança, supõe-se que tudo que você assiste e vivencia é um elemento de construção perene; é por isso que o período infantil é tão importante para o desenvolvimento do infante, é ali que ele vai aprender como funcionam certas coisas, como funciona a própria casa onde ele vai morar por muitos anos, com a graça do Universo. Então crescemos, saímos, e percebemos que cada casa tem seu mundo, e que respeitar as diferenças é vital, além de ser do bom convívio - exceto quando a casa que se está visitando põe-se a grosseiramente nos agredir. 

Me pergunto se as lições da infância, que deveriam evoluir conosco, não ficaram engessadas nesses tempos. É de se pensar isso, tamanha a infantilidade que nos cerca. E fiquei, pois,  pensando nisso,  enquanto a chuva caia e o vento uivava pelas ruas vazias do meu bairro. 

quinta-feira, 25 de março de 2021

Crônicas do Novo Normal: Reasons to be cheerful


Às quartas, eu não tenho muitas aulas. De fato, são apenas duas - Uma das 10 às 11, e outra das 13 às 14, com um aluno que comecei a trabalhar recentemente. O resto do dia é tranquilo, até umas 17 horas, quando começo a me organizar para ter uma consulta com meu terapeuta (carinhosamente chamado de "Doc " por mim, em minha mente, nunca ao vivo), às 17:30. Digo "me organizar" porque é algo que requer um certo tempo para mim, puxar da mente como foi minha última semana até aqui, pensar nas coisas que discutimos anteriormente. 

Esse ritual de meia hora é algo que normalmente me deixa um pouco pra baixo, seja pelos tempos bosta que estamos vivendo, seja porque terapia envolve remexer feridas mentais, e isso sempre dói, como é de se esperar. Mas hoje, estranhamente, não senti a angústia pré-consulta que sinto normalmente. Na verdade, me sentia muito bem, algo espantoso nos dias de hoje. Procurei em minha mente o que poderia ser, e pensei na aula que dei anteriormente, mas mesmo ela não tinha sido assim TÂO boa para eu me sentir bem desse jeito; amo minha profissão, mas não a esse ponto. 

Percebi então que o sentimento que eu tinha era algo incomum, até mesmo visto com maus olhos nos nossos dias cinzas: tratava-se de Esperança, com E maiúsculo mesmo. A causa desse sentimento tão repentino? Hoje foi anunciado que os professores aqui de São Paulo , em conjunto com os policiais, começarão a ser vacinados a partir de Abril. E veja, eu sou um professor; mas não no sentido que me garantiria ser vacinado agora. Então, a Esperança não é para mim ainda.

Mas minha cunhada, que até recentemente teve de se arriscar a ir dar aula em escolas que se recusam a aceitar a realidade, é sim uma professora. Além disso, junto dela está chegando a vacinação de minha sogra, minha querida segunda mãe.  E saber que um ente querido seu está próximo de ser vacinado, com certeza é motivo de sobra para sentir felicidade. 

Não é dar razão a quem gosta de dizer que os preocupados são "pessimistas". A dor e o horror das mais de 300.000 mortes não sumiu. Não diminui a raiva pela injustiça que sofremos com as pessoas exercendo seus podres poderes. Mas se não conseguirmos ficar felizes com as pequenas vitórias que aparecerem em nossas vidas (quaisquer que sejam, e quando aconteçam), então me parece que o horror ganhou de vez. E eu penso que temos que nos recusar a deixar isso acontecer conosco. 

Há que salvar o que ainda resta de nossa alma.  


terça-feira, 23 de março de 2021

Crônicas do Novo Normal: O S significa Esperança, não Horror

Luthor: Man of Steel 

Recentemente, alguém me falou que a Generosidade é o antídoto contra o Medo. E a verdade é que, à primeira vista. eu achei essa frase um tanto, bem, brega. Generosidade versus Medo? Calma lá, não estamos numa história de fábulas! Como poderíamos sequer pensar nisso num mundo como este, nestes clima, com as coisas desabando sobre nossas cabeças?

Então, pensei melhor e vi que quem estava sendo tolo era eu: PORQUE estamos vivendo neste mundo assim, é que pensamentos como os acima devem ser cultivados, preservados, expostos. Foi seguindo um pensamento como o meu anterior, de considerar ideias de mundos e pessoas melhores como tolices, que chegamos aonde chegamos. Ideias fixas espalham-se pela mente: Más ideias infectam a mesma, como um câncer. 

Se assim acontece, as formas de espalhar ideias são as armas mais poderosas na construção de uma sociedade, quaisquer que seja a mesma. Infelizmente, não creio que tenhamos feito um bom trabalho neste sentido de disseminar boas coisas. Mesmo em situações mais inocentes, a brutalidade e a sanguinolência são as principais mensagens passadas, pela TV, pelos livros. 

Recentemente, uma reedição do filme da Liga da Justiça foi exibida com relativo sucesso, e apresentou Um Superman sanguinolento, uma Mulher Maravilha assassina, um Batman sem piedade. Todos esses são apenas personagens de ficção, sem impacto? Talvez, mas eles são também, antes de tudo, sintomas: não mais nos apetece enquanto sociedade, consumir cultura pop que exiba mensagens mais suaves. Queremos o sangue, as vísceras, sem piedade. 

E como sabemos, essas coisas se refletem no mundo; e nem falo das crianças que potencialmente possam a vir assistir este filme (embora elas estejam, sim, na minha mente). Falo de como, mesmo em um entretenimento mais bobo, os reflexos da violência se mostram não como consequências, mas como única opção de ação. Quando pensamos em uma pessoa que nos atrapalha, possivelmente a primeira resposta que surja seja de natureza extrema. E é isso mesmo que queremos? 

Se conseguimos transformar um símbolo de esperança nos quadrinhos, em um outro que espelha a vingança e a brutalidade, o que esperar de nós mesmos em momentos mais extremos? 

Quem é o Homem do Amanhã que estamos construindo? 


domingo, 21 de março de 2021

Crônicas do Novo Normal: Piadas Mortais

 

Batman: A Piada Mortal 

Em 16 de Março de 2021, um homem matou 8 pessoas em casas de massagem na cidade de Atlanta, Georgia. Os motivos estão sendo investigados ainda, mas a principal teoria, corroborada por testemunhas e pelo fato de 6 das vítimas serem mulheres de ascendência asiática, é de que o crime tinha intenções de atacar aquele grupo étnico específico. Um dos oficiais responsáveis pela investigação, capitão Jay Baker, foi recentemente tirado do caso pela sua declaração que os motivos do suspeito seriam que ele "teve um dia bem ruim". 

Durante o ano de 2020, houve um aumento significativo do abuso físico contra mulheres e crianças dentro de seus próprios lares. A ONG World Vision estima que no Brasil houve um aumento de 18% deste tipo de violência contra menores entre 2 a 17 anos de idade. Entende-se com isso, que os responsáveis, não conseguindo suportar a tensão da pandemia e não tendo nenhum tipo de amor pela própria cria, resolvem descontar a raiva nos mais indefesos, resultando muitas vezes em ferimentos graves e mortes. Tudo por culpa de "um descontrole", ou talvez "um dia especialmente ruim". 

Em Março de 1988, a DC Comics publicou uma Graphic Novel, de autoria de Alan Moore com arte de Brian Bolland, chamada A Piada Mortal. Nela, é apresentada a origem (ou ao menos uma das origens) do vilão Coringa, ao mesmo tempo que ele executa um plano para provar que todos podem perder a sanidade, tal qual ele: basta acontecer um dia ruim. A ideia dele é tentar enlouquecer o Comissário Gordon com torturas físicas e mentais, entre elas forçando-o a ver as fotos de sua filha, Bárbara Gordon, sofrendo após tomar um tiro que partiu sua coluna ao meio. 

Batman: a Piada Mortal

Na madrugada de 21/03/21, eu sentei para escrever esta crônica e não sabia o que dizer. Fiquei um bom tempo olhando para a tela em branco e... palavras me faltavam. Eu pensava, naquele momento, o quanto eu tinha para falar e o quanto eu não conseguiria jamais expressar. Pensei, não pela primeira vez, que deveria ter sido um pintor: Eles sempre me pareceram os artistas mais explícitos em emoções com suas obras, mais diretos. 

Então me dei conta que eu sabia muito bem o que queria escrever, apenas lutava contra as palavras. A Piada Mortal, que eu li a tanto tempomartelava em minha cabeça, junto com os fatos que eu falei acima (e tantos outros...). E eu sabia que a conclusão que vinha era óbvia, embora não diretamente do que o personagem queria dizer. 

Não acredito que um dia ruim transforme as pessoas em insanas. Isso é tolice. 

Eu acredito que a maioria das pessoas já é ruim, e que o dia mais difícil apenas dá a elas a oportunidade de expandirem seu potencial. E então, um membro da família mais desprotegido vira o alvo de seu despertar, ou talvez uma pessoa na rua, seguindo cansada para casa. Já não são mais pessoas, e sim elementos de catarse, para o demônio que alimentam dentro de si. 

Eu acredito que as pessoas que são assim são a maioria no mundo. O que nos leva a pensar: como viver sendo a minoria? A real minoria, dos que creem em um mundo que possa melhorar? Essa é a  verdadeira questão.

Ou talvez seja tudo realmente só uma monstruosa piada, e nós somos apenas os elementos que caminham rumo ao gancho dela. 

quinta-feira, 18 de março de 2021

Crônicas do Novo Normal: It's a kind of magic


Recentemente escrevi sobre o poder das representações nos "produtos culturais" que temos ao redor dos filmes, músicas, livros, etc. Na ocasião, me detive em representações de povos, em como a dita cultura pop vê esses povos. Mas e outras questões mais diretas e banais, mais... constantes no dia-a-dia? Como enxergar essas questões? Qual a linguagem que é utilizada para o bem e para o mal nestes quesitos? 

A resposta, claro, é simples: Magia. 

Vivemos em um mundo mágico, se aceitarmos as palavras do dicionário Oxford: "O poder de aparentemente influenciar o curso dos eventos usando forças misteriosas ou sobrenaturais". Não consideraremos aqui o lado sobrenatural (embora ele seja prenhe de interpretações e coisas interessantes a se dizer), mas peguemos o lado misterioso, e ficará bem claro o quanto estamos presos em um mundo de magia. Porque a mente é a coisa mais misteriosa dentro da realidade humana, e nossa mente é diariamente afetada e conduzida para lados e questões que não necessariamente seriam nossa primeira escolha. 

Você duvida? Perfeito: quantas vezes você olhou uma propaganda de Coca-Cola e sentiu vontade de tomar? Ou talvez tenha sentido fome quando viu um comercial de lanches diversos? Não se engane: você está sendo manipulado, diariamente, por pessoas que não tem o melhor dos seus interesses em vista. E eu falei acima só de comidas: quantas ideias estão dentro da nossa cabeça, que  podemos ter certeza absoluta de não terem vindo de algum post de facebook, de alguma fala antiga de pais e mães, de um episódio numa série qualquer? 

Conforme disse Alan Moore, o Bruxo de Northampton: o mais próximo que temos de "magos" no mundo atual são artistas e , curiosamente, publicitários, a partir do momento que ambos produzem trabalhos que lidam com símbolos e imagens do nossos subconsciente, e que portanto afetam nosso próprio pensamento, nossas próprias ações. E no entanto, esse poder tem sido utilizado de forma extremamente nociva, quase maligna eu diria, para manipular massas em grandes ações de auto-extermínio, de aceitação de seu próprio fim. 

Esse é o problema. Qual a solução? 

terça-feira, 16 de março de 2021

Crônicas do Novo Normal: "Pobre gosta de luxo, quem gosta de miséria é intelectual"


Existe um fantasma rondando a população brasileira. Ou melhor, existem vários, e um deles inclusive é presidente; mas o que me refiro hoje é algo bem mais sutil, embora possa ser nocivo a longo prazo: a fetichização do sofrimento. 

Acho que talvez possamos culpar o passado estritamente católico de nosso colonizadores, quando vemos por exemplo as pessoas chegarem e dizerem: é assim mesmo, tem que sofrer para poder chegar em algum lugar. É a filosofia do remédio amargo: se o xarope que tomamos não tiver gosto ruim, será que ele está curando mesmo? Não será sofrer que traz a cura? E com esse pensamento, nos sujeitamos a muitas coisas terríveis, no âmbito pessoal e profissional. 

Sim, quem não ficou um tempo terrivelmente longo numa relação que não tinha futuro nenhum, só porque "meus avós também não se davam bem no começo, e ficaram juntos por 50 anos"? Quem não trabalhou por um salário de miséria, podendo conseguir algo melhor, porque "aqui que me deram a oportunidade, talvez eu consiga crescer ainda mais se tiver paciência". Paciência, essa palavra-armadilha! Quantas almas não se perderam dentro de uma areia movediça metafórica, esperando pacientemente o momento certo acontecer? 

Mas o principal endeusamento que eu me refiro hoje é muito da ideia, particularmente entre a camada mais jovem da população, que aqueles que vivem uma vida considerada mais simples por eles, vivem melhor e com mais liberdade. A falsa ideia da "liberdade romântica dos marginalizados". 

Eu até posso entender essa linha de raciocínio se considerarmos, sei lá, uma vida no campo, onde a pessoa esteja realmente buscando uma vida diferente, bucólica e cheia de trabalho, mas bem diversa da cidade. A questão aqui é que a maioria das pessoas que dizem querer viver, digamos, de trabalhar num bar e "apreciar a noite" esquecem-se que um determinado garçom tenha que, por exemplo, varar a noite trabalhando e rezando por gorjetas, só para sobreviver. Ou que aquele sonho de ter uma livraria underground está grosseiramente enterrado pela necessidade de vender livros ou afogar-se em dívidas.

Eis o sonhador acéfalo de nossos tempos: pouca prática, muita minhoca na cabeça, e quase nenhum fruto. E quando chega a hora de pensar e lutar por coisas válidas (como melhorias específicas na sociedade, ou pelo menos na própria cidade), eles pensam que, já que seu sonho oblíquo não deu certo, nenhum mais dará. E tornam-se niilistas amargos e chatos. 

Ainda assim, eles renderam já muitas risadas e esta crônica, então, eu digo:  um brinde, amigos, com aquele litrão que você diz adorar mas na verdade prefere é uma Heineken!


sábado, 13 de março de 2021

Paixão nacional: A violência


Há muito o que dizer sobre o fascínio das pessoas sobre séries de assassinatos e crimes, e eu mesmo já falei disso a algum tempo atrás: faz parte da necessidade das pessoas de buscar uma resolução, em um mundo caótico e confuso. Como isso é algo universal e atemporal, sempre teremos essas questão, essa lacuna a preencher, então o fazemos com a ficção, com a arte. 

Contudo, acho que isso merece mais uma visão, essa fixação por crimes e horrores do mundo moderno, particularmente brasileiro. Porque veja, um programa como o "Cidade em Alerta" não tem, em absoluto, nenhuma resolução; ao contrário, os crimes são apresentados ali de forma nua e crua, e os criminosos muitas vezes estão soltos, para consternação do apresentador, que aproveita a deixa para conclamar ações mais severas da polícia (como se a mesma já não o fizesse). 

Zero resoluções, zero conforto - e uma audiência significativa. por isso eu quase não culpo os canais de televisão, porque se há a produção destes tipos de programa, com certeza há a demanda intensa pelos mesmos. Não sei dizer se o brasileiro gostaria, realmente, de parar de consumir tamanha brutalidade. 

Sim, o jornalismo "mundo-cão" é um grande sucesso no Brasil, em forma impressa e televisiva. Por vezes me pergunto se aqueles documentários sobre crimes bárbaros que o Netflix tem, também são sucessos de audiência aqui no Brasil, ou se a preferência nossa é maior com crimes "caseiros", sem tanta complicação. Uma facada durante uma discussão, um assalto á mão armada, coisa nossa, produto nacional. E por que essa paixão nacional tão intensa? Por que paramos para ver a gravação de uma morte a tiros pela TV? Ou olhamos fixamente para fotos e notícias no jornal de tiroteios e mortes? 

Existe a desculpa oficial: preciso me informar para saber aonde estas coisas acontecem e evitar; ou preciso saber para me indigna, correr atrás de melhorar, de lutar por algo melhor.  Razões tolas e falsas, porque as pessoas não querem admitir o lado mais sombrio da coisa: elas gostam de ver isso. Cada pessoa morta pelas balas são uma confirmação do quanto o mundo é decididamente ruim, cada batida policial é a chance de viver a adrenalina não da justiça, mas do tiroteio, da violência. O brasileiro é viciado em violência, e é extremamente difícil ver um indivíduo neste país que não considere agressão como uma das formas de conseguir o que quer. 

Como crianças abusadas fisicamente pelos pais, vivemos nossos dias em busca do melhor alvo para nossa ira santa e justificada; me pergunto se essa é realmente a saída ideal, ou se talvez não tenha passado da hora de uma revisão interna de valores de nossa população.

quinta-feira, 11 de março de 2021

Crônicas do Novo Normal: Divina Comédia Humana

Fonte: Rai Radio

Esses dias eu estava vendo junto com a minha esposa, uma entrevista com Roberto Benigni. Foi engraçado, porque eu não tenho lá um grande apreço pelo ator (não que eu desgoste; apenas o acho normal), mas Aline ficou bastante empolgada com a ideia de vê-lo sendo entrevistado, e lá fomos nós. 

Fiquei agradavelmente surpreso: a entrevista era em inglês, então Benigni teve alguma dificuldade de se expressar, mas que energia! Que vontade de pular, correr, viver ele tinha! A plateia ia ao delírio, e ele parecia estar muito empolgado com a oportunidade de estar ali (era, ao que parecia, sua primeira entrevista na Inglaterra). Ele não conseguia ficar parado no sofá: levantava e gesticulava e sorria, mais ou menos como a imagem que se tem na cabeça de um italiano, só que ao vivo! 

O tema que ele falava tão apaixonadamente, tão empolgado? O Inferno de Dante. Aparentemente, ele estava fazendo uma turnê pela Europa (o ano da entrevista, me parece, era 2017, 2018, então foi antes da pandemia que nos atormenta no momento), aonde ele fazia uma espécie de leitura dramática do Inferno de Dante, associando com fatos da atualidade, e interagindo com a plateia.

Tanto quanto eu não sou particularmente empolgado com Roberto Benigni, também não o sou com Dante Alighieri; e no entanto me vi vencido e vendido pela energia que o ator transparecia ao falar da sua turnê. Parecia algo completamente novo e mágico, não porque ele falava bem de Alighieri (o que, certamente, ele fazia), mas porque ele acreditava piamente no que dizia. A sua voz não era de um vendedor, era de um , e isso fez toda a diferença do mundo. 

Assistir aquilo me fez pensar naqueles momentos especiais, quando você vê uma pessoa falando apaixonadamente de um assunto que você talvez não tenha tanto interesse assim, mas que acaba encantado unicamente pelo interesse que essa pessoa demonstra. E os assuntos podem ser dos mais variados: certa vez me vi ouvindo atentamente uma explicação sobre tipos de canetas, feita por um senhor em uma papelaria; e as palavras que ele dizia quando falava de tamanhos de pontas, cores, e formatos, soavam tão eloquentes que não pude deixar de ir para casa pensando em canetas e mais canetas. Outra vez foram plantas o assunto, e esse, embora eu tenha um fraco por jardinagem em geral, também me empolgou bastante, ao ponto de eu quase poder ver o jardim do orador. Eu mesmo já fui apontado como um falante apaixonado de uma série de coisas, principalmente História e quadrinhos; acho que talvez sejam esses meus pontos de inspiração! 

De qualquer forma, fico pensando no quanto este mundo é variado em tantos aspectos, em como cada assunto que existe tem, em algum lugar, seu entusiasta. Com certeza, essa é uma das experiências mais humanas que se pode ter no contato com um semelhante: ouvir o que o coração do indivíduo tem a dizer. 

terça-feira, 9 de março de 2021

Crônicas do Novo Normal: Estigmas


Ontem, eu vi o filme "Um príncipe em Nova York 2", sem ver o um. Sim, eu sei, um sacrilégio, ainda mais para mim, um cara que cresceu vendo Sessão da Tarde com seus outros filmes dos anos 80, inclusive um monte do próprio Eddie Murphy. Acho que talvez eu tenha pulado ele por achar que não seria muito a minha praia; confesso que sempre fui um fã inveterado de filmes de ação com comédia, como justamente o é Um tira da Pesada. Os gostos moldam as nossas experiências neste planeta Terra. 

De qualquer forma, eu vi o filme em companhia virtual de meu grande amigo Genival e sua querida companheira Tayná, e foi um momento muito divertido entre pessoas queridas. O filme em si, embora não tenha sido um dos meus favoritos, me fez pensar muito sobre representações, sobre como as coisas podem ser passadas pelos filmes - às vezes nas menores coisas. 

Porque veja, uma coisa que me impressionou muito, e que eu talvez não tivesse tanta preocupação se tivesse visto o primeiro, foi a representação do reino do Rei Akeem, Zamunda. Confesso que, por ser um filme de comédia, eu esperava uma representação mais ridícula talvez - ou talvez a palavra seja "mais caricata". Surpreendi-me por não ser assim; na verdade, o reino em si é muito bem feito, possivelmente um dos pontos fortes do filme, e fiquei muito feliz com isso. 

Fiquei pensando muito sobre isso. Em minha cabeça, essa imagem caricata veio de cara - porque é o que estou acostumado a ver em outras representações. Porque é o que as produções culturais tendem a fazer, buscar na África, tudo que pode haver de ruim: guerras, doenças, pobreza. Como se o continente fosse o único onde ocorrem estas misérias, como se ali fosse a foz dos males do mundo - conforme diziam antigamente os padres católicos em seus sermões. 

E falo aqui da imagem africana perante o mundo, mas com certeza isso ocorre com uma série de outros grupos marginalizados, entre eles os indígenas em nosso país. Só pelo fato de eu ter citado isso, com certeza uma série de imagens surgiram na mente do leitor - imagens que possivelmente não são nada acolhedoras, mas que são as espalhadas pelas mídias, introjetadas em nossas mentes. E que se repetem por tanto tempo, que nunca paramos para realmente considerar o valor certo dessas imagens, o quanto elas foram construídas perversamente ao longo do tempo. 

O que será que precisamos fazer para fugir das armadilhas do que os outros querem que nós pensemos?

sábado, 6 de março de 2021

Crônicas do Novo Normal: Elogio ao ócio



Oscar Wilde dizia que a verdadeira arte sempre afetaria nossas emoções antes de nossos intelectos, e eu acrescento: para isso acontecer é preciso se dar um pouco de tempo para sentir o que se tem para sentir, parar e cheirar as flores, por assim dizer. Mas como fazer isso no mundo de hoje? Sim, pois me parece que tornou-se um verdadeiro crime de postura, para muitos, o simples fato de parar e observar a si mesmo, quanto mais não diriam de parar e observar uma obra

Parece um tema menor para estas crônicas, e talvez seja; mas isso o torna menos digno de se considerar? Ademais, não creio que seja realmente algo supérfluo: ao contrário, acredito que o direito de "bestarmos" é algo absolutamente importante, tanto que pessoas poderosas estão fazendo o possível e o impossível para tomar de nós até mesmo essa liberdade. Não falo nem da liberdade de poder parar e apreciar um livro, quadro, novela, o que for: falo realmente de poder parar e ponto. Olhar os lírios do campo, arrancar capim, andar a esmo (embora essa atividade esteja realmente um pouco em pausa nos dias atuais). 

E não pense que isso é uma teoria de conspiração furada, analise você mesmo: quando foi a última vez que você teve um tempo para descansar, mínimo que fosse, e não se sentiu culpado por, sei lá, não estar arrumando a casa, ou organizando talheres, ou o que for? O mundo, tal como existe, nos faz querer produzir, produzir, o tempo todo, e nos afasta da nossa mente. Somos corpos que caminham , trabalham e não sentem direito, só pela metade. 

O ócio foi criminalizado. É hora de resgatá-lo da lama. 

Que possamos ficar parados sem fazer nada, e não nos sentirmos inúteis; que ouvir Enya não seja um motivo de piada, e sim entendido como uma forma de se conseguir a paz interna. Que, aliás, toda forma de se conseguir suavidade na alma seja respeitada, desde que ela não machuque ninguém nem cerceie a liberdade de um semelhante. Em suma: que possamos entender bem nosso coração sem sermos considerados piores por isso; afinal de contas, é ele quem toma pelo menos metade das decisões em nossas vidas neste plano. 

quarta-feira, 3 de março de 2021

Crônicas do Novo Normal: Heróis para todos os públicos

Fonte: Bleeding Cool

No último 21 de Fevereiro, fez dez anos que Dwayne Mcduffie partiu deste plano rumo ao infinito, e não creio que ninguém se mexeu a respeito disso, exceto alguns amigos meus (aos quais eu dedico esta crônica, inclusive!). Pelo menos, não houve comoção no Brasil; o pranteado escritor e produtor está aos poucos sendo homenageado pela sua antiga editora, a DC Comics, com o relançamento do universo que ele ajudou a construir, décadas atrás. 

"Quem é Dwayne Mcduffie?", o leitor perdido pode estar se perguntando, e eu não o culpo: Ele não foi um nome muito divulgado entre os conhecedores casuais de quadrinhos, dirá entre pessoas que não tenham esse hobby. Contudo, ele com certeza foi um nome bem representativo: Além da já citada Milestone Comics, ele também foi produtor do desenho Super Choque, que muitos devem conhece de sua infância.

"E daí, Escriba?", diria o leitor ainda mais impaciente, e eu já o acalmo e chego em meu ponto. Este homem, bem como os que se juntaram a ele no projeto insano de conseguir dar mais representatividade aos marginalizados pelo mundo nerd, teve como projeto de vida falar disso. E neste mundo de agora, mais segregado do que pensávamos que seria em pleno 2021, representação é fundamental. Recentemente vimos a fome disso no público mais esquecido, quando Pantera Negra fez um marco cultural entre as pessoa, com todos imitando a saudação de Wakanda, a terra natal do herói. O ser humano, principalmente mais jovem, é um animal simbólico; e Mcduffie foi um dos maiores entendedores disso em seus trabalhos.

Fointe: Polygon

Mais do que uma representação qualquer, acho que o que mais se tem falta agora é algo orgânico; representação para diminuir o peso na consciência de uma empresa é irrelevante, porque os impactos são mínimos. Agora, se pensarmos uma produção cultural planejada diretamente como uma influência e representatividade para um público carente da mesma, aí sim temos um caminho bom. E a Milestone era especial justamente por fazer isso.

Como eu disse ali em cima, em breve os personagens da Milestone devem voltar às bancas: que tenham vida longa, e agitem a imaginação de mais uma geração que precisa tanto de representação nesta guerra cultural intensa, entre quadrinhos e balões de fala. Que venha logo, e que o sonho de Dwayne Mcduffie renasça nestes tempos tão, tão difíceis. Também é importante sonhar.