domingo, 26 de abril de 2020

Crônicas da cidade pandêmica: A Grande Noite

Fonte: pixabay

À noite, as coisas ficam mais claras no Butantã. Isso, apesar do fato de muitos preferirem o dia; isso é perfeitamente normal, tem as pessoas do dia e da noite, e acho que sempre existirá. Mas acho que a noite é a face verdadeira do mundo, o momento que ele se mostra sem maquiagens cobrindo as falhas.

Sou suspeito para falar, é claro: sempre fui um habitante da noite dos mais empertigados, então é claro que eu defenderia ardentemente meu momento máximo das 24 horas da terra. Mas tenho argumentos fortes, embora eu admita que sejam no mínimo tendenciosos. Pois para mim, a noite é como mundo sempre deveria ter sido.

As ruas vazias, exceto por um ou outro carro passando; pessoas cambaleando exaustas para casa também são comuns, embora não necessaramente em grande número. O vento parece mais forte também; as árvores balançam solenes, acenando lentamente para o céu estrelado acima delas. pássaros em algum lugar, desafiando o urbanismo distorcido que existe abaixo deles.

Os cães e gatos dominam as ruas também; andando e buscando abrigo ou comida. É claro que eles não pertencem ali, e que a vida é bem mais difícil para estes pobres animais forçados a sobreviver em um ambiente hostil.... ainda assim, não consigo deixar de pensar que o elemento deslocado ali é o humano, quando surge com seus carros barulhentos, suas músicas estourando os tímpanos, sua pose de donos de tudo. E como gostamos de tudo ao nosso bel-prazer, não?

Não é a toa que muitas pessoas burlam tragicamente a quarentena, sem nenhuma necessidade: creio que elas simplesmente não conseguem entender um mundo quea natureza os força a tomar atitudes drásticas. Tudo deve estar sob o controle máximo da humanidade: rios devem ser aterrados, animais devem ser domados, montanhas devem ser aplainadas. Entender-se como parte da natureza é penoso ao Homem, e entender que a natureza pode esmagar seus planos com facilidade é mais penoso ainda. Resta então a negação, até o amargo, amargo fim.

E é por isso que a noite é mais natural que o dia para mim: porque tem, em sua grande parte, pouquíssimo do elemento mais falso em nosso planeta: as pessoas.

2 comentários:

  1. "Calada a noite preta,noite preta..."
    "O gato preto cruzou a estrada..."
    Lembrei destas músicas ao ler essa crônica NOTURNA.

    ResponderExcluir