domingo, 5 de abril de 2020

Crônicas da Cidade Pandêmica: Fugere Realitas


O velho Braga chamava a TV de "máquina de amansar doido", discordando do velho adágio de Stanislaw Ponte Preta, que a chamava de "máquina de fazer doido". Ele dizia que muita coisa seria perdoada à TV pelo seu papel de companheira dos solitários, nas grandes madrugadas sem fim do mundo afora ; acreditava realmente no papel redentor do aparelho como aconchegador dos perdidos. Era, antes de tudo, um otimista, que não chegou a ver o que a televisão tinha de pior para oferecer: as grandes guerras de audiência valendo qualquer coisa, as notícias "mundo-cão" virarem a regra e não a exceção.... Por vezes me pergunto o que ele teria achado de tudo isso. Talvez desse um longo suspiro, e lamentasse uma vez mais o fim do toque humano na sociedade em geral. Talvez mesmo, enchesse seu peito e falasse em tom de lamúria:

- AI DE TI, MUNDO! 

Ou talvez minha imaginação esteja mais a mil que nunca, nestes momentos. Francamente, é difícil dizer. 

Mas falávamos de TV, e acho que hoje em dia devemos também falar da neo-TV, a grande internet e seus sites de streaming de programas, que nos servem de contraste e consolo ao mundo sombrio lá fora. Todas as séries, filmes, shows que vemos, servem-nos com um bálsamo da alma, que está confusa e ferida pela atrocidade da realidade. Aqui em casa, os shows são da mais variada espécie: receitas, entrevistas, aventuras místicas, mistérios, doramas japoneses.... Não há bem uma regra, é muito mais baseado no que estamos sentindo ou querendo sentir naquele momento específico. São programas de todos os cantos do mundo, em todas as línguas que houverem... não importa muito, desde que falem a mesma linguagem que a de nosso coração quarentenado. 

É claro que há nisso um escapismo. Evidente que nada do que vemos ali vai nos deixar um passo mais próximo da cura, ou irá nos ajudar a superar os problemas que virão depois, no mundo pós-pandemia.Nenhuma história na tela da TV ou computador que usamos -nenhum dos heróis e vilões, nenhuma da tramas mirabolantes ou realistas, nem mesmo o julgamento seríssimo da qualidade de um doce - fará mais do que diminuir um pouco a longa vigília que fazemos por hora em nossas casas. 

Mas quem disse que buscamos algo mais do que isso? 

Talvez simplesmente queiramos entender melhor o sofrimento da mocinha ali na tela, porque não queremos - não temos forças - para pensar no nosso próprio sofrimento, ou no futuro incerto que se avizinha. Talvez ver o herói vencer o vilão seja uma coisa boa de se ver de vez em quando, pelo menos ali na série. E nesta dança de fuga da realidade (temporária, posto que tem hora para acabar), talvez possamos por alguns momentos voltar a ser aquela criança sentada em frente à TV, com os olhos fascinados em algum programa, e vivendo sem saber as manhãs de sábado do nosso passado além dos tempos, além de tudo. 






2 comentários: