terça-feira, 4 de agosto de 2020

Crônicas da Cidade Pandêmica: Metamorfose Ambulante

Arte: Margery Gurnett

Todos os dias, quando acordo, eu sou uma pessoa diferente, em milímetros, mas sou. Isso vai além do fator físico: é sabido que emagrecemos um pouco enquanto dormimos, e que descamamos a pele (aliás, descamamos durante o dia inteiro). Então, obviamente, não somos EXATAMENTE a mesma pessoa que fomos ao irmos para a cama. A velha história de um homem não poder se banhar no mesmo rio nunca, etc.

Mas o que me refiro é mentalmente: algo acontece em minha cabeça que, quando acordo, é quase como se fosse uma nova pessoa, com as memórias da anterior, que vem visitar minha vida, ver o que ando fazendo, julgar meus feitos e derrotas. Nesse sentido, o próprio termo "minha vida" perde um pouco o sentido: vida de quem, se eu mudo a cada noite? A não ser que se entenda esta vida como uma espécie de corporação, empresa pessoal, onde cada dia um diretor diferente vem coordenar as coisas.

Mas faço as coisas parecerem mais  frias do que realmente são; a verdade é que tudo isso carrega em si grandes vantagens. Por exemplo, Todo dia, ao acordar, eu vejo minha mulher ao meu lado e descubro algo novo com que me apaixonar por ela. Podem ser das coisas mais perceptíveis (como seu corpo ou seu cheiro), como algum detalhe mínimo que, por algum motivo, tinha me passado desapercebido. Por exemplo, há dois dias, percebi que ela tinha ainda mais sardas perto do nariz do que eu havia percebido. Que coisa boa! Passei o dia observando isso, e pensando em como este detalhe, antes relegado a um pano de fundo, lhe acrescentava charme e elegância.

Também o novo Neto percebe sabores de formas diferentes: o que antes era um café amargo demais para meu paladar, hoje é uma bebida supra-sumo dos deuses. Um prato que talvez fosse apimentado demais em um certo dia, agora é talvez necessitado de um pouco mais daquele molho tabasco. Em tempos de quarentena, então... acho que nunca tive tantas mudanças abruptas de gosto de comida quanto agora. Até mesmo doces específicos tem feito minha felicidade, algo que eu pouco ou raramente teria gostado antes.

Assim vou (vamos?) vivendo dia-a-dia, cada manhã um novo eu, cada noite uma nova mudança se iniciando.

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