quarta-feira, 24 de junho de 2020

Relatos da Cidade Pandêmica: Benjamin, o lixeiro

Fonte: Istockphoto

"O meu cargo, na real, é de gari, mas estou na coleta de lixo por uns 5, 6 anos já. Sempre trabalhei de noite; minha cabeça funciona melhor, meu corpo se arruma bem, sei lá, eu prefiro. Mas já tive que trabalhar de manhã também. Sempre coletando o lixo: com o tempo a gente pega a experiência com isso.

O salário é uma bosta pro que a gente passa. Média de 1200 contos aqui na cidade que eu moro,  correndo risco de se cortar com vidro que uns moradores arrombados botam junto com o lixo comum; correndo de gente armada ali nas ruas mais perigosas; a humilhação de passar e ser julgado como se fosse mesmo o lixo que a gente carrega. esse, aliás, é um dos motivos que a gente aqui de noite prefere esse horário, menos gente, menos aporrinhamento.

Não posso dizer que cruzei a cidade toda, tenho o setor que eu trabalho direitinho. Mas aqui é grande, e variado, então eu sei bem quais as mudanças que tem de cada bairro, em cada parte. A cidade é insana, tem ruas que você só vê mansões, basicamente, e outras partes só casinhas de tijolo cru, uma laje cinza acima. O que sempre tem é um cachorro. Toda rua tem pelo menos um cachorro solto , olhando de longe ou seguindo a gente. Às vezes eles latem e perseguem, mas sendo honesto nem é tantas vezes, pelo menos nesses 6 anos. Alguns a gente até tem amizade, falando à vera pra ti.

Nessa pandemia? Vivendo e segundo, meu irmão. Trabalhador essencial. Sigo pelas ruas, correndo atrás do caminhão, jogando o lixo na caçamba. passo pelas festas que a galera faz, apesar do tal do Fica em Casa que vivem falando. Olho e fico pensando, meu Deus, o que será que faz a pessoa desistir assim? Porque sabe, na minha cabeça, isso não é descrença, é desistência mesmo. Da vida, de um caminho melhor. Não julgo, falar a verdade. Já fui assim.

Mas isso tudo, eu penso rápido mesmo, valeu? Porque daqui a pouco vem a curva, tem que segurar forte: ainda tem mais de 4 horas de turno, e a noite nem começou direito. Olha o que tem aqui no saco: vidro de novo. Eu te falei, mano, o lixo pior é a bosta da pessoa que faz a gente se sujeitar a isso."


3 comentários:

  1. Os "invisíveis"que são necessários e vivem à margem.

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  2. Nossa. Fortissimo
    Sempre pensei que pra conhecer uma sociedade só basta ver qual é a forma que ela lida com o lixo. Afinal, tudo aquilo que negamos, é aquilo que somos. Brasil lixo!

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  3. E de pensar em quantoas pessoas sustentam a sociedade e são completamentes apagadas por ela... Obrigada pelo texto forte e essencial.

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