quarta-feira, 12 de maio de 2021

Crônicas do Novo Normal: O sol e a peneira


Domingo passado, eu não consegui dormir, por um motivo completamente além da minha vontade: meu vizinho de rua estava dando uma festa com o melhor dos anos 80. Registre-se aqui que ele mora em uma casa, e eu moro no oitavo andar de um prédio: por aí já dá para ver o quão alta estava a música. Seguindo pelas ruas naquele momento silenciosas do Rio Pequeno, era quase uma boate perdida no tempo, com Queen, Abba e A-ha tocando em alto e bom som. 

Normalmente eu estaria feliz pela seleção de músicas deste meu vizinho: porém eram aproximadamente 10 da noite de um domingo, eu precisava dormir para dar aula no dia seguinte e ele não demonstrava sinal de querer parar a festa, Além disso, caso não o leitor não se lembre, estamos ainda em plena pandemia: eu não podia afirmar com certeza, mas me parecia difícil que ele faria uma festa com música alta e churrasco (aos 17 graus!)  só com seus pais e cães. A aglomeração, portanto, era certa.

Enquanto ele festejava, pensei sinceramente em ligar para a polícia, no que fui dissuadido pela minha esposa: não valia a pena, melhor seria tentar dormir e seguir em paz. Fui convencido: e o vizinho seguiu em sua festa até exatamente 2:27 da manhã (eu sei porque eu não consegui dormir, é claro), quando o som parou misteriosamente (e piedosamente) no meio de uma música do Jota Quest. 

Fiquei pensando no que teria parado a festança. teria sido a polícia? Algum vizinho outro que tenha se vingado e cortado a luz? Um flash de sanidade em meio à tentativa do festeiro em afogar os gritos da morte ao seu redor em música, carne e bebida? Quem pode saber: o fato é que finalmente consegui dormir, e tive de acordar às 7 da manhã, completamente quebrado de tal forma, que só recuperei o sono dois dias depois. 

Durante o padecimento de se ouvir pessoas gritando hinos dos anos 80 a plenos pulmões, também fiquei pensando nisso, nessa vontade de se ignorar o mundo, o horror ao redor, e simplesmente mergulhar no hedonismo. Um conhecido meu disse que confessa desejar ser mais assim um pouco, poder esquecer os problemas gritantes ao redor. Eu mesmo acho isso uma tremenda estupidez, e de certa forma até uma chave pra entender como chegamos no ponto que estamos com a Covid; Tantas pessoas tentaram negar a gravidade da situação, que ela se fez insustentável, inegável. 

E no entanto, eis aí meu vizinho fazendo a festa, provando que dá sim para se negar o óbvio ululante. Talvez seja esse o verdadeiro espírito brasileiro: negar até tudo ser insustentável de verdade. Se for assim... temo pelo futuro. 

Ou talvez eu só esteja de mal-humor por ter dormido mal. 

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