terça-feira, 2 de junho de 2020

Crônicas da Cidade Pandêmica: O horror nosso de cada dia



O tema do desconhecido é algo muito caro a uma série de autores e diretores de horror e terror. O que pode ter mais potencial de ser apavorante do que, especificamente, não saber o que há em um quarto escuro desconhecido, onde sua mente preenche o vazio com formas e ares sinistros? E neste momento, tornamos o horror o OUTRO, o avatar de nossos males, e decididamente fora de nós.  Porém, eu creio que podemos tentar entender isso muito além deste foco. Ou talvez, o melhor termo seja: entender isso muito mais próximo de nós do que se imagina, exatamente. 

A sensação do desconhecido como matéria-prima do horror é algo que muitos talentosos artistas usaram. Stephen King é muito conhecido por gostar de propor a sugestão dos terrores, antes de lançar mão de cenas mais abertas, grotescas. Num lado mais chegado ao suspense, Hitchcock era um artista que trabalhava nas sutilezas, no que a audiência esperava que acontecesse, sem necessariamente mostrar  vísceras e sangue explícitos na tela. De fato, Psicose é um dos poucos trabalhos dele em que há uma demonstração mais explícita de sangue em tela. Há também outros autores, mais famosos porém com tema smais cósmicos, que não creio que se enciaxem aqui por estar me atendo a um medo mais próximo, mais em nossa vizinhança humana.

De fato, eu escolhi estes dois auteurs, porque creio que eles demonstram especificamente o que acho ser o fator central de nosso tema de hoje: o Inferno ser os Outros. Ou talvez, o Horror ser o outro. Tanto King quanto Hitchcock , embora cada um com suas especificidades, se esforçam em mostrar o lado oculto do humano, mesmo quando há fatores outros que tornam o fio condutor da história mais  complexo, ou mais sobrenatural (no caso de King). Esse caminho, inclusive, é algo muito usado por outros artistas: com certeza é mais fácil criar um monstro e usá-lo como símbolo de algo de podre dentro da própria alma humana, que enfrentar a podridão em si. 

No entanto, aqui estamos. Olhamos para fora, e vemos o horror bem ali. e não se trata de um monstro, ou alienígenas, ou espíritos. O nosso horror é um ministro que diz odiar o termo povos indígenas. É um presidente que se recusa a demonstrar qualquer senso de humanidade pelos mortos do Covid, e que prefere acusar a doença de ser um esquema político. Nem tão longe: é um parente que diz concordar com tudo que o presdiente fala, inclusive sobre exterminar oposição, associar negros a gado de corte, diminuir mulheres como merecedoras ou não de serem estupradas. Esses são nossos monstros particulares, e eles venceram.  Talvez nem tanto Hitchcock( que se preocupava mais com thrillers que com o horror, verdade seja dita), mas Stephen King certamente entendeu isso melhor que ninguém: nunca foram os monstros sobrenaturais o nosso problema, e sim os humanos. Sempre os humanos.

E com isso, esse texto passará, e milhares morrerão por nada, exceto por dinheiro e um lucro maior ao fim do ano. Morrerão protestando por direitos enquanto são massacrados por um estado que não liga para eles. Morrerão sendo admoestados por serem agressivos, por não quererem diálogo, quando tantas oportunidades já foram armadas antes, apenas para serem encaradas com desprezo e escárnio. A dança da morte continua. E até esse crônica é apenas uma estupidez a ser lançada ao vento, ao nada. 

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