quinta-feira, 30 de julho de 2020

Crônicas da Cidade Pandêmica: Ode ao professor Raimundo

Fonte: Site Observatório da TV

Sou um homem de sorte. Além da minha vida pessoal ser linda neste momento, obrigado, eu tenho trabalhado com algo que gosto muito, que é ensinar Inglês. Para quem não sabe, sou formado em História, mas tenho uma vasta experiência como professor de Língua Inglesa, ao ponto de poder dizer que tenho mais experiência como professor de inglês, que de História, curiosamente.Ou não tão curiosamente assim, já que fui eu mesmo quem buscou este caminho.

Foi uma profissão que sempre me encheu os olhos, a de ser professor. Pode-se dizer que tenha havido aqui alguma influência dos meus pais aqui: Minha mãe, particularmente, certamente foi uma pessoa que me inspirou a ser professor. Muito da minha postura como profissional devo a ela, das observações que fiz de seu trabalho ao longo dos anos que moramos juntos. Não tudo, é claro: Ainda sou uma pessoa um tanto, digamos, laissez faire no que diz respeito à organização de documentos e coisas mais burocráticas que nós professores precisamos fazer. Mas com certez,a o melhor de mim como professor,, devo à Dona Gleice.

Hoje trabalho como professor à distância, especificamente via Zoom e skype, como muitos colegas devem estar fazendo em tempos de Covid-19. Não digo que tenha uma vida fácil. De fato, há dias que parece que nunca estive tão cansado como quando dou 3 aulas direto . Mais cansado até, do que se tivesse feito as mesmas aulas em sala de aula: Li em algum lugar que o foco de uma pessoa trabalhando no computador home-office é redobrado, porque o indivíduo fica mais facilmente distraído pelas coisas e pessoas ao redor: filhos, animais de estimação, campainha tocando ao longe.  Se assim for, isso explica porque todo dia acordo ainda mais cansado que o dia anterior.

Mas apesar disso sou sortudo, muito sortudo, porque tenho amigos que são professores regulares, e que além dessa tensão toda, ainda encaram a idiotice de donos de escolas querendo reabrir seus estabelecimentos em plena pandemia. Donos que só pensam no lucro, se recusando a ver  a suprema estupidez e risco que é reabrir um ambiente onde jovens e crianças vão necessariamente conviver além dos limites estabelecidos, e que carregarão a doença para seus lares, onde dançaremos mais uma vez a dança da morte que tanto convivemos neste primeiro semestre de 2020. Hoje mesmo ouvi falar de um dono de escola que foi fazer uma carreata clamando pela reabertura das escolas: é a definição de estupidez.

Ainda assim, lá estão os professores , com todas as reclamações sobre ter de usar uma tecnologia de forma quase improvisada, sem qualquer treinamento por parte das escolas; tendo de praticamente tornarem-se youtubers para manter a atenção de jovens francamente entediados e em choque com a situação de um mundo em declínio; e se preocupando consigo e com seus entes queridos, posto que são humanos como todos nós. Sim, lá estão eles, e este pequeno texto é só mais uma forma de homenageá-los, embora eu saiba muito bem que o que seria melhor era respeito e um salário justo.

Um dia amigos, quem sabe um dia. 

segunda-feira, 27 de julho de 2020

Crônicas da Cidade Pandêmica: O Catálogo Das Coisas Específicas



Na madrugada da alma, que muitas vezes combina com a madrugada normal de horários e tudo mais, pensamos nas coisas mais loucas, do engraçado ao trágico. Por que o gosto de peito de peru é algo tão peculiar com um determinado de tipo de maionese? Por que aquele garoto se suicidou no meio de um Domingo ensolarado? O que será que eu vou cozinhar amanhã para o almoço? Sabe, coisas assim, aleatórias.

Numa dessas madrugadas, pensei nas músicas reais que ainda existem. Todos nós conhecemos essas canções: são aquelas que você sente o sentimento verdadeiro por trás. Talvez às vezes não seja realmente o sentimento do cantor, talvez as palavras não representem totalmente a dor que carrega em seu coração, mas com certeza ele cantou com sua alma ali. Fingiu que era dor a dor que deveras sentia, como diz o Fernando Pessoa. Você pensaria que essas obras são muito comuns, mas ao contrário, elas tem sido cada vez mais raras; em tempos plásticos, músicas plásticas são as mais pedidas. Arte plástica em geral, ou talvez eu seja um velho ranzinza de 32 anos.

Pensando nisso, lembrei de uma outra preferência específica que tenho: fotos preto em branco, de uma pessoa à vontade, olhando com amor para a lente que captura a imagem. Agora sim, eis um item que é extremamente específico. Boa sorte procurando isso no Google: muitas vezes tentei e só encontro as fotos clássicas, sabe, mega posadas. Eram tempos difíceis para fotos, muitas vezes elas levavam quase 20, 30 minutos. A magia, evidentemente, sumia nesse meio tempo. 

Mas no fim, sabe o que é mais difícil de encontrar por aí? Emoções genuínas. As pessoas falam muito de tempos líquidos, mas elas estão erradas, e muito. É uma era de emoções plásticas: brilhantes e aparentemente duradouras, mas falsas. apagadas com o tempo. Em dias assim, eu luto para encontrar  as migalhas de emoções verdadeira,s seja em canções, fotos, comidas feitas com amor. No começo é imperceptível, porque suas sensações estão diluídas pelo lixo que você chama de emoção real; mas com o tempo, seu paladar se apura, como se provasse um bom vinho. 

E assim, falando em vinho, proponho um brinde: às coisas com verdadeiros sentimentos. Que sejam poucas, porque assim são mais intensas; mas que sejam eternas também, pelo menos enquanto durem.

sábado, 25 de julho de 2020

Crônicas da Cidade Pandêmica: I am Bread

Fonte: wikipedia


O prazer da comida é algo tão bom, que a religião teve de transformar em pecado. Qual a razão da gula existir, afinal? Certamente os religiosos de antigamente não estavam nada preocupados com o peso dos fieis, e sim em tolhir os mais empolgados de comer toda  a comida, que devia ser escassa, dos peregrinos no deserto.

Mas vivemos em tempos mais modernos, e comida é algo que domina muitas mentes nestes dia,s particularmente em tempos de quarentena, pois não. Mais de um amigo veio me falar que descobriu os prazeres da culinária durante estes tempos meio esquisitos, e não os culpo - afinal, era isso, ou pedir comidas cada vez mais caras pelo motoboy, e isso sem saber exatamente se o indivíduo está sendo pago direito ou não. Assim, muitos abriram a consciência, fecharam a carteira, e tocaram a aprender a realizar seus quitutes mais queridos ao coração.

Aqui em casa, como em muitas outras, houve o milagre da criação do pão: pães diversos, cheirosos, deliciosos, feitos pelas mãos hábeis de Aline Hesse Garcia. Sendo justo, ela já fazia pães bem antes disso ser moda (tornando-a talvez uma padeira hipster?). Contudo, graças à pandemia, ela foi aperfeiçoando seus dotes nessa questão, enquanto eu prossegui minhas descobertas na variação de almoços (algo que contarei melhor em outra ocasião).

Com isso, amigos, descobri o grande prazer que é acordar com o cheiro de pão novo pela casa toda. Uma sensação ímpar, que estou certo que muitos que leem este blog já tiveram o prazer de ter. É engraçado o quanto ele aponta menos para o estômago e mais para a alma, como se o dia novo, cheio de oportunidades, fosse ele mesmo um pão quentinho, gostoso. O forno, portanto, é a nossa mente, ou talvez nossa alma. Ainda preciso pensar mais a respeito disso.

Isso tudo foi para dizer amigos, que o pão é um alimento dos deuses. EU SAÚDO O PÃO!

terça-feira, 21 de julho de 2020

Crônicas da Cidade Pandêmica: 90 dias para fofocar



Além de futebol, e de reclamar da vida, o brasileiro tem como tradição nacional a fofoca. Ora, não minta para mim: com certeza você já deu aquela esticada de ouvido para tentar entender o que o vizinho estava falando mais alto. Ou então , nesses tempos modernos, procurou o perfil de uma determinada pessoa no facebook ou instagram da vida, seja porque você teve objetios românticos com essa pessoa, seja por pura e simples curiosidade.

Eu sempre advogo que a fofoca é uma consequência do impulso humano de querer saber mais. A nossa mente é faminta por conhecimento, mesmo que inútil .E saber da vida dos outros ao nosso redor é algo assim como o açúcar branco de ter conhecimento: não vai acrescentar nada à sua vida, talvez na verdade até torne sua vida pior.... mas por Deus, como é viciante!

O que nos leva a algo que eu e Aline temos feito durante esta quarentena interminável, o nosso novo êxodo hebreu no deserto da estupidez ao nosso redor. Temos assistido, de maneira quase hipnótica, o programa do TLC 90 dias para casar. Se você não conhece, procure no youtube, estou certo que vai encontrar episódios inteiros deste programa por lá, como nós dois encontramos. Ou melhor, não procure. Salve-se, leia um livro, afaste-se deste vil show de horror.

No entanto.... que divertido que é. Em 45 minutos vemos um verdadeiro zoológico humano de pessoas desesperadas por companhia, tão angustiadas com a solidão que aceitam qualquer migalha de carinho vinda de qualquer parte do mundo; e por outro lado, temos pessoas tão atormentadas em querer sair de seus países, que se sujeitam a situações por vezes humilhantes, por vezes simplesmente ridículas, tudo por um green card pros EUA, lutar pelo falido sonho americano.

Assistimos isso tanto, que eu fiquei enjoado comigo mesmo e sugeri à minha esposa que asisstissemos  algo mais construtivo, no que ela concordou. Foi aí que vimos um documentário muito interessnate sobre o Che Guevara, e aprendemos em 1 hora e 45 minutos muito mais que em 3 horas de 90 dias para casar. Contudo, se não fosse ver esse show, nós provavelmente não teríamos nos animado para assistir um documentário... então talvez de maneira indireta, o TLC tenha contribuído para o nosso conhecimento? Isso sim é escrever certo por linhas tortas!

domingo, 19 de julho de 2020

Crônicas da Cidade Pandêmica: Fugere Urbis

Fonte: http://mayoorange.blogspot.com/
E de repente o velho ciclo alcança outro aspecto: a fuga pros interiores. Não que a situação esteja melhor por lá; de fato, se considerarmos São Paulo, as coisas estão indo de mal a pior. O governador recentemente disse que grande parte das cidades estavam no chamado "nível vermelho", e será necessário se organizar uma estratégia para atender as pessoas afetadas pelo Covid-19, de novo.

Se a realidade aponta para uma situação matematicamente pior nas cidades interioranas, por que o fascínio da fuga da cidade, nesses tempos difíceis? A bem da verdade, o conceito em si não é novo, mesmo em tempos mais modernos. Desde algum tempo tenho visto mais e mais pessoas buscarem uma vida "tranquila" e se mudando para lugares mais bucólicos - ou pelo menos com a fama de assim serem. Muitas dessas pessoas, de fato, fazem o movimento de retornarem para suas cidades natais, ou talvez a cidade natal de seus pais e avós. Há sempre alguma estrutura ali que os abrace, seja familiar, seja da memória.

Mas, como eu disse, o plano não é novo e remota a tempos feudais mesmo, quando da queda do Império Romano e da fuga das pessoas para interiores, refugiando-se nos feudos (que antes eram propriedades rurais das elites urbanas). O porquê naquela época era evidente : os "bárbaros" invadiam os portões de Roma, e tudo saqueavam. Era necessário buscar uma espécie de segurança entre novos muros, ou talvez um esquecimento por parte da turba invasora, que talvez se contentasse com os saques nas cidades e deixasse seguir em relativa paz os refugiados campesinos.

Não tanto a questão da segurança (que, como vimos, é bastante discútivel, pelo menos no que concerne o Corona vírus), mas muito mais pelo segundo fator, é que eu acho que as pessoas veem no campo seu refúgio ideal: a visão de que ali, longe da turba enlouquecida e sem máscara, a doença passará como uma tempestade desafortunada, e tudo mais ficará em paz, bastando apenas resistir um pouco.

Não posso deixar de manifestar minha discordância desse pensamento, mas também não posso culpar as pessoas que o tem. Pois a verdade é que até eu mesmo busco a paz em lugares diversos esses dias... e em certos dias azuis, quando olho ao horizonte a infinidade de prédios a se perder de vista em São Paulo, fecho os olhos, sinto o vento ao meu redor, e imagino um longo caminho de árvores e verde, com o vento sacudindo as folhas, numa sonata natural.

quinta-feira, 16 de julho de 2020

Crônicas da Cidade Pandêmica: Reflexo do passado

Fonte: Getty Images


O Facebook, vocês sabem, tem uma coisa que se chama "lembranças". Você também tem, estou certo, mas as do Facebook são diferentes: ele mostra pra você algumas publicações antigas (sejam fotos, textos, ou um link qualquer), e pergunta se você quer compartilhar isso. Algumas  não precisava nem perguntar: é deletada na certa. Outras são mais suaves, e bonitas: essas são as que mais mexem com a gente. Nesses dias, que estamos presos em casa, as memórias podem ser as melhores fugas que temos.

Mas nem sempre é o que ocorre. Pois é fato que ao passar do tempo, mudamos dia a dia, ano a ano ; e a nossa versão anterior é uma casca que vai aos poucos se rachando, e dando lugar à nossa versão atual, que também irá dar a lugar a uma versão futura, num ciclo que prosseguirá até a nossa partida. E quando somos confrontados com uma versão anterior de nós mesmos, é posssível que surjam uma série de emoções: a mais comum é vergonha, seguida de perto por vontade de rir alto de si mesmo.

Quanto a mim, não sou exceção à regra: é muito comum eu ver surgir nas lembranças da rede social, opiniões que eu tinha, e piadas bizarras que eu fazia, que não condizem em absoluto com quem eu sou hoje em dia. Veja, até mesmo um passado reacinha eu relembrei - não sem passar uma absoluta vergonha própria de como a desinformação me levava a ter um posicionamento agressivo por nada. O vinho da juventude é amargo com nossos erros; muito melhor é o frescor da limonada de nossa Experiência.

Mas sempre me pergunto, quando vejo isso: qual conselho eu daria ao jovem Alfredo neto? Será que o advertiria dos dissabores que viriam ao longo dos anos? Ou as alegrias que viriam adoçar sua vida, que em muitos momentos parecia não ter fim em angústia? Não sei. Só sei que ele provavelmente não me ouviria e me mandaria pra bem longe. Ainda assim, há em mim uma ternura inescapável, e a vontade abraçar a mim mesmo do passado é grande: Pois, naqueles dias, eu não sabia ainda como sentir a vida.




terça-feira, 14 de julho de 2020

Crônicas da Cidade Pandêmica: As pipas do rio pequeno

Fonte: Portal Coelhense


E de repente, elas surgiram - as pipas, rabiolas, papagaios, o que seja, direto das ruas do Rio pequeno, este bairro que eu não gostava e que aprendi a amar. São pipas de quarentena, é claro; ou melhor, são de verão, mas limitadas às questões da quarentena em si. Não são menos bonitas por isso: ao contrário, elas tem em si aquele jeito especial, de liberdade nos céus, que é negada na terra pelas circunstâncias.

É claro que as condições são outras bem diferentes das que tivemos em julhos anteriores. As crianças não podem correr nas ruas, por exemplo. Mesmo em um lugar com uma míriade de festas, e com minhas constantes reclamações, na verdade a maioria das pessoas tem até respeitado bem a quarentena, na medida do possível. Prova disso  é que o monte de crianças da rua em frente ao bloco onde moro, estão dentro de casa. Quietas? Por Deus, não! Ouço elas berrarem de dentro da minha sala, e eu moro no oitavo andar. Mas estão em casa, isso que importa.

E como fazem, portanto, para empinar as pipas? Ora, para isso servem as lajes! E delas os papagaios saem voando, aproveitando o vento forte da região. Nem precisa correr - uma vantagem nesses momentos de isolamento. São pipas de todo jeito: azuis, vermelhas, de plástico de supermercado.... O que importa é voar, ali, com o brinquedo, planando nos céus.

E veja só, dessa maneira, não estão mais aquelas crianças (e até mesmo alguns adultos!) presos a uma realidade grotesca, doentia. Ali no ar, elas são livres como outrora, ou talvez até um tantinho melhor que antes. As pipas não são somente brinquedos ali, são verdaderios aviões para as alminhas de todos, e pilotando eles, todos libertam-se devagar, mesmo que só por alguns minutos. OUVAITSE!

sábado, 11 de julho de 2020

Crônicas da Cidade Pandêmica: INSANITY

Arte de Sebastian Eriksson

Ouça. A cidade está perdida. Está ouvindo? Ninguém está comemorando nada. As festas que você ouve são gritos de desespero. Sim, mesmo aqueles urros de prazer no meio de um funk. São pedidos de socorro. Acredite em mim.

Por que está tudo perdido? Isso exigiria uma aula de História, não uma crônica. As pessoas costumam brincar que o brasil se perdeu por volta de 1500, querendo dizer que tudo começou a dar errado com o "descobrimento" do Brasil. Elas não estão erradas. mas acho injusto jogar toda a responsabilidade da insanidade humana no Brasil. Se muito, somos produos de séculos e séculos anteriores de loucura e descaso da humanidade. Se você for um monumento histórico na Europa, e perguntar às paredes o porquê de tanto sofrimento.... elas não dirão nada. Porque paredes não falam. Portanto, pare de ser tonto e leia um livro de História: ali sim, você vai ver o quanto as alucinações mentais seguiram o caminho das pessoas como um cão fiel, devorando os restos de caos que deixávamos em nosso rastro.

E o que é a definição de insanidade? Bom, Einstein falou que é repetir a mesma coisa, de novo e de novo, esperando um resultado diferente. Na verdade ele não disse isso: foi a autora Rita Mae Brown. Acho que é uma coisa que podemos parar de repetir de novo e de novo. Mas quem quer que tenha falado isso, ele/ela estava certo. Se tudo se repetir, nada muda.  A mesma dor, a mesma comichão em cometer erros. a mesma esperança errada. Tudo se repete.

A saída, portanto, seria mudar os caminhos que fazemos as coisas. E isso é mais difícil de saber do que parece. Afinal de contas, tecnicamente já se tentou todos os caminhos anteriores e sempre com resultados negativos. Alguns dizem até que Bolsonaro é a resposta do brasileiro para se tentar de tudo na política nacional, esquecendo de pensar que ele é uma resposta tanto quanto esfregar um pedaço de merda numa prova é uma resposta. Mas eu divago, eu divago.

Em meses de quarentena, olhando para um teto fatalisticamente branco, assistindo séries com minha esposa, brincando com gatos, eu creio que encontrei as mudanças. E veja você, elas são especificamente isso mesmo: brincar com gatos, abraçar a pessoa amada, olhar para um teto branco. Pois veja, antes de tudo isso, eu não era uma pessoa muito presente em casa. Talvez fisicamente eu fosse; mas a mente estava sempre a um passo de me preparar para a aula no dia seguinte. Nisso, o home office tem ajudado bastante: tenho tido tempo para existir. E essa foi a mudança maior para mim (embora não desprovida de uma série de questionamentos. Como o presente neste texto)

Talvez as coisas sejam mais ligadas a pequenas mudanças que grandes. Talvez o mundo já esteja perdido mesmo. Pessoalmente, eu acho que sempre esteve; mas também acho que as melhores mudanças vem em pequenos pacotes. Uma bolacha nova que você comprou; uma atividade bacana que você resolveu iniciar. Tudo isso são chaves para fugir das repetições, do ciclo de tédio até a morte. A chava da mudança é a pequena.

Ou isso, ou o meu anti-alérgico bateu fundo aqui.

quinta-feira, 9 de julho de 2020

Crônicas da Cidade Pandêmica: Eterno Retorno


A Persistência do tempo, de Salvador Dali

O passado é o futuro. Sempre foi. Quem estiver dizendo algo diferente, está vendendo algo errdo para você: tudo se repete. Um ciclo de eventos que se repetem ad nauseum, até um derradeiro "fim", e depois tudo recomeça outra vez, incontáveis vezes. 

Eis um pensamento um tanto controverso, e muitos diriam até, pessimista. "Estamos então, condenados a viver sempre os mesmos erros, caro escriba?", já ouço alguns fieis leitores dizendo, e de fato,não estamos;em geral, porque muitos tem a sorte de partir deste mundo antes do ciclo se reiniciar. Os atores são quase sempre novos, no nosso eterno retorno; a peça, porém, é a mesma, intoxicante e perigosa, em mais de um aspecto. 

Por que perigosa? Nem é preciso realmente dizer, não? Os perigos do passado, os horrores, sempre vão voltar. Às vezes nem precisamos esperar muito: embora não seja em grande escala, os erros do passado sempre voltam, em algum ciclo local. Uma cidade, uma casa, uma escola. Sempre nos assombrando esses fantasmas... e no Brasil, como há fantasmas! Racismo, violência sexual, preconceito em geral... tantas assombrações, e sempre em todo lugar. 

Finalmente, por que intoxicante? Porque com os erros, também vem s acertos. Cada horror traz em si o germe de sua própria derrota, e nunca se tarda muito em encontrar este germe. E conseguimos nos livrar desses fantasmas, por hora; mas ficamos complacentes. Achamos que nunca mais vai acontecer. Este também é um erro cíclico, clássico; Sempre achamos que agora nós aprendemos. Que a infâmia nunca mais voltará, que tudo ficará bem agora. 

Ledo engano. Renato Russo já nos dizia: O terror continua, só mudou de cheiro, e de uniforme. E nossa, deve ser a Vigília Eterna. 

terça-feira, 7 de julho de 2020

Crônicas da Cidade Pandêmica: Aqui, ninguém vai pro Céu


Hoje minha mãe, uma grande professora de português e literatura, passou para seus alunos uma versão da música consagrada de Criolo, "Não existe amor em SP", com ele cantando junto com o Milton Nascimento. Uma canção belíssima, ainda mais nesse bate-bola entre dois cantores excelentes. Recomendo muito que se busque e ouça profundamente, de olhos fechados, numa sala escura.

Quanto a mim, eu já tinha ouvido essa versão antes. E a canção original também, anos atrás, em um kitnet numa rua no coração do Butantã.

Eu estava em São Paulo, sozinho, e era o primeiro inverno que eu passava de verdade. Entenda, na minha terra natal, "inverno" é mais uma questão filosófica, que física, real. A Amazônia só conhece períodos de mais ou menos chuvas, não o frio intenso, de Julho, que vem enganador com seus 17, 18 graus de manhã, e seus 2, 3 graus na madrugada. Muitos podem dizer que isso não é frio de verdade: eu posso dizer que não me importo com o que acham. Era frio para mim, e é isso que importa.

Então, eu ouvia músicas aleatórias,e encontrei "Não existe amor em SP". O Kitnet era frio e pqeueno, então o som ecoou por todo o espaço. Naquele dia, eu acho que encontrei a melhor explicação para o que eu sentia, para toda minha solidão. A música se tornou uma espécie de hino mental: eu a ouvia em minha cabeça quando pegava ônibus, quando estava andando nas ruas, quando caminhava para estudar na USP. 

Tempos depois, conheci minha esposa, e me pareceu que eu exgerava um pouco sobre como São Paulo era. Até conhecê-la, eu creio que não acreditava em pessoas que fossem, de fato, preocupdas com coisas mais suaves - pelo menos não do jeito que ela o faz. Conheci Aline e me apaixonei: e então, para mim, a música não fazia mais sentido. Existia amor em SP.

Fui um tolo, é claro. Porque Criolo não está falando de indivíduos; ele está falando da cidade em si. Da alma da cidade, do que agita a grande massa que anda nas ruas, que a faz agitar-se, agir. E a última coisa que passa pelo coração dessa massa é amor. Como pode existir amor em SP, com pessoas morrendo de frio nas ruas?  Com tantos clamando pela reabertura sem a menor preocupação com as mortes , com cuidados para evitar as mortes? Uma cidade que elegeu um prefeito que teve como atitude molhar os moradores de rua, no inverno, com jatos de mangueira?

Aqui é a cidade sem coração. Os pobres são degraus de riqueza para os ricos, ninguém sequer se importa se eles morrem ou não. Ou você acha que os números de casos de corona na região mais pobre importam para os mais ricos? Evidentemente que não, porque senão haveria um esforço maior da própria sociedade para ajudar essas pessoas. Ao contrário, elas são impulsionadas à morte - e por isso, mergulham na dança do desespero para não pensar no que se envolvem todo o dia, só para sobreviver. A classe média, na qual estou incluso, não está à salvo: somos apenas mandriões chorões, lamentando a falta de humanidade das pessoas, ou somos aspirantes a uma riqueza que amais chegará, porque compramos a ideia da meritocracia, a pior cenoura já criada para fazer cavalgar um cavalo chucro.

Está é São Paulo. Venha nos visitar, temos sanduíches, lojas, e mortos por descaso. Mas é só não olhar para eles que fica tudo bem, se duvidar dá até para fazer o selfie e editar depois o morador de rua esfomeado lá no fundo.

domingo, 5 de julho de 2020

Crônicas da Cidade Pandêmica: CABEAMUN 1


O brasileiro anda firme no empecilho de ser o mais completo idiota no mundo. A competição é muito boa: nossos brothers  dos EUA estão a toda, e saíram, arrisco dizer, bem na frente, como costumam fazer desde sempre. Ali o ambiente de armas e pessoas imbecis ajuda muito eles a seguirem à frente da competição. EUA medalha de ouro em asneira? Talvez!

Mas como somos brasileiros e não desistimos nunca, estamos aí firmes e fortes;. esses dias, um shopping resolveu fazer uma venda drive thru, com os carros passando por dentro do próprio estabelecimento. Isso, numa cidade que está ainda no dito "sinal vermelho" de abertura, ou seja, nem deveria estar funcionando realmente o lugar.  No Rio de Janeiro, imediatamente após uma abertura que nem deveria ter acontecido, alguns bares registraram aglomeração recorde,  com pessoas sem máscaras, alegria sem motivo a mil. "Finalmente voltando à normalidade", uma pessoa que grava o vídeo disse, e nisso eu discordo: sempre estivemos na normalidade. O brasileiro médio não deixou de ser um imbecil só porque estava de quarentena. Afinal, no começo da pandemia, as pessoas se atropelaram para comprar papel higiênico, esquecendo talvez que:

1) O mundo não ia acabar, e portanto você poderia comprar papel tranquilamente num momento posterior;

2) Existe sempre a possibilidade de você lavar a bunda depois de fazer cocô. Ou talvez as pessoas realmente não soubessem disso: nesse caso, não deixou de ser um aprendizado pra elas!

É tanta asneira, tanta, que eu francamente não consigo falar todas numa crônica só. Sendo assim, pedindo a benção do saudoso Stanislaw Ponte Preta, ressuscito aqui seu FEBEAPÁ (o Festival de Besterias que Assolam o País), num pacote mais jumbo. Como a burrice está ganhando de goleada pelo mundo inteiro, faz-se urgente alguém marcar a competição de jumentices internacionais. Declaro portanto, iniciado o Campeonato de Besteiras que Assolam o Mundo, ou CABEAMUN, para facilitar. Porque essa sigla, prezados organismos que leem este texto? Porque sim, na verdade. Faz a homenagem e vira algo novo, ao mesmo tempo. Estamos aqui para surfar na onda do passado!

Torno aqui solene então, acompanhar dolorosamente as besteiras que nossa humanidade estpa fazendo durante a pandemia, e manter uma pontuação digna, sem bairrismos, apesar de que, como vimos, o Brasil está com fome de ganhar, talvez por trauma do 7 a 1 ainda latente nas almas. Contudo, vamos ter que nos esforçar muito: Taiwan acabou de lançar um serviço paras pessoas fingirem que estão viajando ( com check-in, entrar no "avião" e tudo), para os viventes que sentem saudade da rotina de se apertarem do lado de um estranho numa poltrona mais barata que sua alma. Olha aí gente, oriente se orientando na Competição! Mas eu não desisto, AGORA É BRASIL!




quinta-feira, 2 de julho de 2020

Crônicas da Cidade Pandêmica: Elegia



Hoje, marcamos quase um milhão e meio de infectados no Brasil, e mais de sessenta mil mortes.  Pra você ter uma ideia, em 2019, morreram de homicídio neste país pouco mais de 40.000 pessoas, de acordo com os dados oficiais - e isso de uma das mortes que nós, em tese, mais nos preocupamos. E isso num ano todo: ainda estamos em Julho, acabamos de começar o segundo semestre.

Se formos considerar mortes por causas respiratórias, o principal sintoma do Covid-19, os dados vão se acumulando em emergência:  O Brasil teve um aumento de 8,15% de mortes por essa causa, de acordo com a ARPEN (Associação de Registradores de Pessoas Naturais).  Evidentemente. o principal contribuidor disso é o Corona, a despeito do que insite em acreditar o presidente Bolsonaro, quando afirma ser tudo um grande exagero da imprensa.

E no entanto, temos um culpado maior nisso tudo, ou ao menos em uma das áreas que mais afetam nossa sociedade atualmente. Pois veja, não podemos fazer nada a respeito das questões estruturais: resta-nos esperar que os nossos representantes no poder façam algo que possa nos ajudar a sobreviver a esta crise maldita, a esta peste moderna. Alguns estão ajudando, outros estão claramente atrapalhando (cofcof Bolsonarolazarento cof cof), mas é inegável que esta bola, não nos pertence.

Contudo, existe uma série de coisas que poderìamos estar fazendo melhor, e simplesmente nos recusamos a tanto. Talvez por estarmos cansados da quaretena que não acaba, talvez por puro e simples egoísmo, Muitos de nós estão vacilando nos cuidados, e digo isso com pesar no coração, pois alguns destes que vacilam eram justamente parte dos poucos que ainda se valiam de tentar respeitar a quarentena. Talvez também seja uma falsa esperança: afinal, se na Europa já estão reabrindo, porque não no brasil, esta terra que certamente já sofreu tudo que tinha de sofrer, na visão dos iludidos?

E toca haver bares disfarçados de pet-shop, para poder funcionar escondidos. Toca desativar hospitais de campnaha, na esperança que tudo jáa está acabando. Até mesmo conversa sobre retorno do campeonato carioca estão acontecendo - tudo seguindo, de acordo com as autoridades, "o máximo de proteção necessário para isso", como se  houvesse possibilidade de se proteger da doença em meio a um jogo acirrado. Não falo aqui dos trabalhadores essenciais: esses tem todo meu apoio e suporte. Falo dos que insistem em sacrificá-los, sem ao menos garantir que eles tenham o mínimo de segurança. Não à toa, o percentual de pessoas infectadas com coronavírus nos bairros pobres da cidade de São Paulo, a maior metrópole do país, é 2,5 vezes maior do que nos ricos. Ou seja, eles simplesmente não se importam se o pobre morrer: a ideia aqui é reabrir tudo, e que morram os (pobres) que tem que morrer.

E falando de morrer, essa sim é a nossa principal falha, nós, humanos, cidadãos, viventes. pois cada um desses números para nós, tornou-se apenas isso: um dado numérico. Um algo que olhamos todos os dias, e anotamos na agenda mental na nossa cabeça. Hoje 60 mil; amanhã talvez 62 mil? 63 mil? Quem pode saber? Fazemos isso, e esquecemos que cada uma dessas pessoas estava viva, tinha planos, sonhos, como nós. Era alguém que aqui estava, e depois partiu, em dores, afogada em si mesma. Não lamentamos a morte dessas pessoas, exceto quando é da nossa família, ou é alguém conhecido. E no entanto, é preciso pensar neles. Ao menos um pouco, ao menos por alguns momentos, precisamos absorver a enormidade das mortes que estamos observando. Precisamos rehumanizar a nós mesmos.

As coisas não podem ser apenas "vida que segue". Não podemos deixar que cada pessoa morta tenha sido apenas um degrau pra gente voltar à dita vida normal, sem qualquer elegia por elas. Sem um pensamento de conforto, de piedade. Se nos fizermos dessa maneira, podemos sair incólumes da
covid, mas nunca mais nos recuperaremos da doença no espírito que causamos a nós mesmos.