quinta-feira, 29 de abril de 2021

Crônicas do Novo Normal: "Cinema é a fraude mais bonita do mundo"


A temporada de premiações do Oscar passou, para completo desprezo de muitos que já entenderam que o Oscar fala menos da qualidade do filme que do espírito que a Indústria Cinematográfica anda carregando em si naquele período específico. Houve um tempo que eu adorava ficar noite adentro, arriscando até umas aulas perdias na escola, para poder ver a premiação; isso passou, e então me permiti ver filmes que não estavam necessariamente no radar da Academia - para a felicidade meu enriquecimento pessoal, com certeza. 

De qualquer forma, a tradição ficou, e eu sempre fico um pouco mais nostálgico de pensar em cinema, nesses dias, mais perceptivo de algumas coisas que assisto também. Os tempos ajudam, é claro: o que mais se pode fazer num fim de semana com a cidade enfrentando uma pandemia, que não seja combinar um filme de streaming com a esposa e ficar assistindo? Não muito, isso posso garantir. E de qualquer forma, esse é um dos nossos passeios quando o mundo não está se acabando: ir ao cinema. Lembro que o último filme que vimos antes da pandemia estourar foi 1917, no cinema do shopping Eldorado ali de Pinheiros, famoso pelo som agradável e pelos tickets não serem um assalto direto ao bolso. 

Antes de sair com a minha esposa, eu também já era um grande frequentador dos cinema paulistanos: Fui algumas vezes no Cinearte do Conjunto Nacional (que tinha fechado em 2020 e agora voltou como Cine Marquise) ver alguns filmes mais cabeçudos; e também fui frequentador do Cine Petra Belas Artes, mas nunca consegui participar de nenhum festival de filmes noite adentro que eles fazem ás vezes. Um projeto para o pós-pandemia, talvez. 

Antes disso, o meu point era um cinema artístico em Belém do Pará chamado Líbero Luxardo. Quando penso nesse cinema, a memória que me vem são de filmes japoneses agressivos e estranhamente filosóficos, películas europeias dos anos 70/80 que causam mais sensações que fazem sentido, e uma trilha sonora de rock gótico/ post-punk que eu costumava ouvir no ônibus, voltando para casa a noite (as sessões sempre eram de noite), escondendo o celular da melhor maneira possível para não ser roubado. 

É estranho pensar nisso, o quanto das minhas memórias com os filmes e os cinemas envolvem tanto os filmes em si, quanto as experiências antes e depois de ir. Talvez porque eu pense a ida e a volta do cinema como partes integrantes da sensação como um todo. Nunca consegui desligar do impacto do que assisti assim que o filme termina, sempre levei algo da tela comigo por um bom tempo.... talvez seja isso o que eu sinto mais saudade em relação a filmes nesta pandemia: a viagem de ida, cheia de empolgação e antecipação, e a de volta, com todas as emoções que isso acarreta. 

terça-feira, 27 de abril de 2021

Crônicas do Novo Normal: "Já estive no paraíso, mas nunca estive em mim"




Em 2015, quando cheguei em São Paulo, eu não era um homem feliz. Mal era uma pessoa completa: já falei em crônicas passadas de como eu costumava mergulhar nas noites paulistanas e voltar na manhã seguinte, vazio e deprimido, quase um clichê de filmes britânicos com jovens mergulhados em tristes cotidianos que quisessem afogar a lacuna dentro de si com hedonismo. Junto de mim, tinham várias outras pessoas na mesma condição, o que me levou a pensar se isso não era uma condição sine qua non do paulistano médio.

O tempo passou, eu sofri calado, conheci uma pessoa maravilhosa que me ajudou a sair das trevas, e hoje cá estou; mas nunca esqueci aqueles tempos caminhando no escuro interno d'alma. também descobri que essa busca de preencher o vazio, longe de ser algo restrito aos cidadãos daqui da Pauliceia Desvairada, é uma condição quase global. As pessoas buscam a felicidade de qualquer forma, e são repetidamente rechaçadas, algumas já desde cedo, quando aterrissam numa família despedaçada, presas com alguma pessoa que preenche seu vazio com o sofrimento de outrem. Outras nascem com tudo, mas ainda assim lhes falta esse  je ne sais quoi, este elemento X que lhes tornaria plenos. E aí, toca mergulhar em bebidas, sexo, drogas, buscando algo que satisfaça isso, ou pelo menos anule a dor da lacuna. 

Se você pensa que a quarentena e a pandemia serviram para diminuir esta tensão  (pois em teoria, há coisas maiores para se preocupar no momento), enganou-se redondamente. Na verdade, é mais capaz da situação toda ao nosso redor ter aumentado essa questão toda: nada torna o ser humano mais reflexivo sobre sua existência que a consciência da morte, e é claro que ficar parado por um tempo imenso em casa vai suscitar reflexões profundas, quer o vivente queira ou não. 

(Estamos falando aqui de pessoas regulares, não considerando-se presidentes psicóticos bebês-gigantes)

Posso falar apenas de mim, é claro, mas uma coisa tem feito bastante efeito positivo em minhas buscas por preencher a lacuna, e esta coisa é paz interior. Ela vem nos momentos mais insólitos: ao afagar um gato travesso; ao molhar as plantas que temos aqui em casa na sacada; ao estar no sofá com minha esposa vendo reality shows, rindo e julgando a vida alheia. São esses os momentos que tem feito ser possível passar por tempos tão conturbados, e não nada tão grandioso quanto uma festa, um bacanal, algo assim. 

Me pergunto qual o caminho da paz que as outras pessoas tem conseguido fazer. 

domingo, 25 de abril de 2021

Crônicas do Novo Normal: Tempo tempo, mano velho...



Veio uma frente fria essa semana, de sorte que passamos muito tempo com as janelas fechadas aqui no bom e velho apartamento. Por sorte, o fim de semana deu uma esquentada, então pude ficar um pouco na sacada daqui, que acaba dando vista para a avenida Rio Pequeno. De onde estou, consigo ver lojas antigas, bem antigas; em um grupo que faço parte do facebook com fotos históricas da Zona Oeste de Sampa, vi que elas tem quase uns 15, 20 anos. Me pergunto se os donos são os mesmos, se passou de geração em geração a responsabilidade de levar o negócio adiante. Me pergunto como é a cabeça da pessoa que toma conta agora, comparada com a que abriu o estabelecimento. 

Às vezes, me pego pensando nisso mesmo, em como seria uma vida nos anos 60, 70, 80. Na verdade, esta é uma frase equivocada: não penso tanto em como era factualmente a vida naqueles dias, mas sim no mundo interno das pessoas que vieram naqueles anos, no Brasil e no mundo. É muito fácil pensar que podemos entender como eles racionavam, afinal, nossa mente não se alterou em nada, biologicamente falando, daqueles dias para cá. Mas no quesito interno, imaterial, por Deus, quanta diferença temos de nossos pais e avós! 

Por exemplo, as referências culturais; gostamos de pensar que temos total entendimento do que as pessoas gostavam de assistir, ouvir, ler no passado, porque temos dados e tabelas num gráfico e podemos inferir, digamos, que se a música X era a mais ouvida, com certeza era ela a unanimidade entre todos, amada universalmente. Essa generalização nos impede de ver as nuances - que são a coisa mais interessante numa sociedade. Para cada fã de Roberto Carlos, tem um fã de Ovelha; para cada aficionado por rock, há outro fanático por Bossa Nova, e assim por diante. Os gostos são diversos em todos os tempos. 

As referências ao redor, é claro, também mudam muito. Basta ver uma entrevista ou filme antigo e ver referências a coisas como uma série chamada "Duro na Queda", ou algum jogador de futebol que era o afã da época e hoje é pouco ou nada lembrado. Suponho que os símbolos vão mudando para cada geração; e  embora alguns destes sejam fortes o suficiente para chegar até os nossos dias, muitos se perdem no caminho, cápsulas do tempo culturais prontas para serem desenterradas algum dia. 

Com tudo isso, fico pensando no que a nossa geração de agora, a nossa sociedade, vai deixar como mensagem para as outras que virão. Porque outras virão, pode estar certo: o pensamento que tudo vai acabar em breve é tão tolo quanto pueril, sem contar um pouco egocêntrico, de certa forma. Sendo assim, o que será que temos de hoje que vai ser tão impactante assim, ao ponto de ter seu significado mantido razoavelmente intacto lá na frente? Será nossa imagem uma de resistência ou de ódio e horror? Qual será o julgamento da História e nosso suor e lágrimas?

Olho para a rua deserta pensando nisso, profundamente, e lá longe os fantasmas disfarçados de vento continuam a soprar e dançar sua dança eterna, avenida abaixo.


quarta-feira, 21 de abril de 2021

Crônicas do Novo Normal: Caminhando e Cantando e Seguindo as Canções


Quando Caetano Veloso veio a São Paulo,  deve ter ficado tão encantado com a cidade que resolveu fazer uma canção, Sampa, para poder menos homenagear a metrópole e mais prestar respeito às sensações que deve ter sentido quando veio aqui. Porque isso acontece muito, diga-se: as pessoas pensam que certas obras de arte são representações do que estão mostrando, e na verdade são apenas reflexos de como estava a alma do artista quando da concepção de determinada obra.

Mas eu falo de Caetano, porque também compartilho disso, da necessidade de ter uma canção que represente certas andanças que tenho, caminhadas da vida em busca de dinheiro, companhia, ou comida. Ao contrário do bardo baiano, não tenho a capacidade de criar os meus próprios versos sobre meus sentimentos, de sorte que pego emprestado músicas diversas, e monto um pequeno mosaico auditivo de sensações e ruas por onde sigo. 

É um costume antigo: também em Belém do Pará eu andava desafiadoramente (havia um perigo real dele ser roubado, algo que de fato aconteceu pelo menos 3 vezes) com meu mp3 player e uma seleção de músicas que eu achasse que combinavam com o lugar que eu ia. Os gêneros eram bastante diversos, e o sentido talvez mais pessoal que eu possa explicar; por exemplo, eu tinha uma predileção por seleções de músicas de rock gótico toda vez que eu ia à biblioteca do Centur na minha cidade natal. Com os fones devidamente postos na orelha, eu sentia meu pensamento e coração em compasso com a música, e com os livros antigos ao meu redor. Vai saber por que!

Quando me mudei para cá, é claro, mantive meu costume, e assim codifiquei a cidade de acordo com tipos de música e cantores específicos. Por exemplo, Pinheiros para mim sempre teve uma trilha sonora de Paralamas do Sucesso ou algo do Mangue Beat; a Zona Leste (por onde andei muito em 2015), é claro, tem a representatividade do Criolo, ou do Racionais. 

Por vezes, é menos um bairro e mais uma rua: a Augusta , junto com a Paulista, tem todos um ar de Blues e Soul, talvez por causa do som do saudoso Pete Hassle e sua banda Screw'd, ou do também saudoso Jonathan Alves, o Tim Maia da Paulista; a minha adorada Corifeu De Azevedo Marques, avenida central em minha vida aqui no Butantã, tem sempre para mim o ritmo de um bom rock anos 70 - traços de estar perto da USP, talvez. 

Já faz mais de um ano que eu não saio por aí ouvindo as canções das ruas - consequência deste isolamento que estamos submetidos. Na verdade nem sei bem como vão ficar as coisas depois de tudo, se vou me sentir bem ouvindo música em meio a uma cidade triste, cabisbaixa por tantas mortes e descasos. Talvez a única música que eu ouça é a mesma que tenho tocado, constantemente, quando olho da janela do meu apartamento lá para baixo : um sombrio e lamentoso Jazz dos anos 40. 




segunda-feira, 19 de abril de 2021

Crônicas do Novo Normal: Do alto destas árvores, quais histórias nos contemplam?

Quando me mudei para São Paulo, eu imediatamente queria o caos da cidade. Vim de uma cidade relativamente pequena, Belém do Pará; discutivelmente uma metrópole no meio da Amazônia, certamente uma cidade menor que São Paulo, ou Rio de Janeiro, ou o que seja. Como um garoto do interior curioso com a modernidade, eu sentia a necessidade de experimentar o movimento da urbis, queria viver a noite da rua Augusta, visitar os bares e botecos famosos da Pauliceia desvairada, embriagar-me das luzes e néons. 

Porque eu buscava isso, tentei arrumar um lugar próximo da vida noturna quando cheguei. Qualquer um que tenha acabado de se mudar para São Paulo vai lhe dizer que esta foi uma ideia muito tola, ainda mais quando só se tem 3 mil reais em conta, e nenhuma perspectiva de emprego em vista. Ademais, eu não tinha me mudado por motivos aleatórios; meu objetivo era cursar o mestrado na USP, que fica na região do Butantã. Evidentemente, fazia sentido eu morar perto da universidade onde estudaria, ainda mais porque nem dinheiro para transporte eu tinha direito. Rabugentamente, foi o que fiz. 

A região do Butantã é uma área diversa, cheia de contrastes e consolos às almas que o habitam. Em um minuto pode-se estar numa rua considerada de ricos, em outro numa rua considerada mais pobre; bares e restaurantes em abundância ao longo das avenidas Corifeu e Vital Brasil (pelo menos assim era, antes da pandemia). Em comum, apenas um detalhe: árvores. Altas, baixas, carecas ou folhadas, vemos árvores por todos os lados. Bem menos que em Belém do Pará, é verdade, mas também muito mais do que eu sequer cogitava associar ao nome São Paulo

Como se lutasse contra a urbanização agressiva, as árvores surgem em locais quase inusitados, ou talvez seja a cidade que, inesperadamente, resolve construir ao redor da árvore ao invés de derrubá-la; quem poderá saber? O fato é que o bairro me deu o que eu não sabia que queria, que era o abraço das árvores, que fizeram tanto parte da minha vida em Belém do Pará que, agora vejo, eu me sentiria completamente perdido sem um verde perto de mim, fazendo afagos ao longe, dançando ao longo do vento, crescendo incólume à pandemias e presidentes idiotas. 

De fato, tornei-me tão amante das árvores, que tenho uma favorita, que chamo de "Madrinha" e que ilustra esta crônica. Ela fica numa das transversais da avenida Vital Brasil e está lá, em frente a um condomínio, cada vez maior e mais esplendorosa. Toda vez que a visito, temo ser a última: pode ser que os síndicos ou condôminos achem que é a hora dela ser cortada, por algum motivo tolo qualquer. Ainda assim, contra todas as expectativas, ela segue, rumo ao céu, mais perto do infinito que jamais estarei em vida. Quando vi que as coisas estavam sérias entre nós, levei Aline para conhecer a Madrinha, e desde então ela se tornou também, a protetora não-oficial de nossa união. Eis o poder da natureza.

Não vejo a Madrinha desde Março do ano passado. Assim que tudo acabar, gostaria de ir lá e perguntar-lhe como foi seu ano de pandemia, que coisas ela testemunhou, se acha que a vida ainda vale a pena. A resposta do balançar de suas folhas com certeza vai valer a pena ouvir. 

domingo, 18 de abril de 2021

Crônicas do novo Normal: Respeite Meus Cabelos Brancos!


Todos os sábados, eu e minha esposa temos uma conversa via whatsapp vídeo com meus pais, que moram em Belém do Pará.  É um momento leve e de desabafo também, eu penso, para os dois lados; afinal de contas, nesses tempos bizarros, é preciso ter alguém que você confie e que possa falar sobre os despropósitos governamentais, familiares, profissionais, o que seja. A essas pessoas que podemos fazer isso, chamamos Família, seja de sangue ou não. 

Mas eu falava da conversa, e em meios a tantos assuntos, minha mãe tocou no fato de seus cabelos serem agora prateados, sem as cores da pintura que ela fazia anos atrás. Digo prateados, porque é realmente a cor que são: de acordo com minha genitora, para atingir essa coloração é necessário um investimento um pouco alto num shampoo especial roxo, que evita aqueles cabelos brancos meio amarelados (o famoso "tom de estofo de almofada") e porosos. Meu pai, que tambémte tem cabelo (e barba) brancos, aquiesceu ao lado silenciosamente, e infelizmente não me ocorreu perguntar se ele também usava o tal shampoo. Perdoem seu reles cronista. 

De qualquer forma, essa conversa me fez pensar em um aspecto muito interessante de nossa sociedade. Veja, em determinado momento, minha mãe disse que se indignava com quem dizia que cabelos brancos são "relaxo da mulher". "Relaxo nada, isso aqui me dá é muito trabalho pra ficar bonito assim!", ela disse, e eu com certeza acredito; minha mãe sempre foi uma pessoa muito zelosa com sua aparência. Mas esse termo, "relaxo", me fez pensar no quanto somos cruéis, eu diria, com nossos mais velhos, em tantos aspectos que fica difícil de falar só em um texto.

Por exemplo, me parece que ainda impera uma ideia que os mais velhos são "voto vencido" nas coisas, como se todos os seus anos cidadãos fossem zero depois de um certo tempo. Desta forma, por exemplo, as calçadas não podem ser pensadas considerando os mais idosos, ou até mesmo um projeto de cidade em si: tudo tem que ser pela ótica dos mais novos, dos mais fortes, numa falsa argumentação perversa de um pseudodarwinismo de araque. Os ônibus veem os nossos mais velhos como estorvos: não raro eles passam direto quando veem uma quantidade de idosos na parada, e também não é difícil ver projetos da própria prefeitura visando dificultar ainda mais os direitos de gratuidade daqueles que tanto deram de sua vida para a sociedade. 

Podemos falar de vagas especiais e gratuidades que existam, sim; mas elas parecem muito mais um "calaboca" que uma preocupação real com os idosos. Porque, afinal, a partir do momento que cobramos as senhoras mais velhas (e veja que o foco é nas mulheres idosas), de pintar seus cabelos como sinal de se cuidarem, estamos dizendo que queremos que elas se esforcem para parecer jovens o tempo todo. E como isso pode ser compatível com uma real preocupação? De fato, se houvesse mesmo uma preocupação da sociedade em peso pelos mais velhos, não haveriam tantos jovens festejando nas ruas neste exato momento, carregando a doença para suas casas, infectando seus pais/avós, e depois culpando os céus pela sua tragédia. 

O estigma aos membros da melhor idade é real, não adianta disfarçar. Mas eu penso que temos lutado em cima disso, e cada vitória deve ser comemorada de alguma forma, por menor que seja. Por isso, viva os cabelos prateados de minha mãe, que está livre das pressões idiotas da sociedade! E que o mundo possa aceitar esses cabelos em tantos outros, sem o ranço da crítica, mas com o abraço da aceitação!

quinta-feira, 15 de abril de 2021

Crônicas do Novo Normal: Um Olhar Interno


Quando eu vim para São Paulo, a seis anos atrás, eu tinha uma imagem muito forte de mim mesmo e do mundo ao meu redor. Era, é claro, uma visão formada pela experiência de vida que eu trazia dos 27 anos que vivi em Belém do Pará, mas também das pessoas com quem convivi, e das situações pelas quais passei. Como com muitas pessoas, eu tive momentos bons e ruins na minha cidade natal; e como todos que convivem em uma sociedade abertamente conservadora, eu fui formado como um homem desta sociedade, com todos os deméritos que isso implica. 

Com isso quero dizer que eu era uma pessoa muito diferente de quem sou quando cheguei na pauliceia desvairada, em 2015. Haviam traços da pessoa que eu queria ser já formados ali e que não concordavam com os pontos que Belém me oferecia - a saber, as visões que se tinha sobre  cultura, direitos humanos, questões de gênero, etc. A forma como eu tratava as pessoas, porém, era baseada muito menos nas ideias que eu tinha, e mais na imagem que eu queria passar para a sociedade ao meu redor - um homem culto, hipersexual, capaz de discutir sobre samba e ópera na mesma respirada. 

(Importante dizer que eu não era exatamente assim: mas tentava ardentemente passar essa imagem). 

Quando comecei a terapia, em 2017, essa foi provavelmente uma das primeiras coisas que eu comecei a rever em mim, a necessidade de projetar uma imagem que agradasse o Outro, esse indivíduo que é todos e não é ninguém em especial. Foi uma labuta, e de fato ela ainda continua: velhos hábitos tendem a morrer de maneira difícil, e ainda tenho muito a rever dentro de mim, e do que passo para fora de mim, toda a raiva e frustração e angústia que sinto, vindas de antes... O tempo demora a curar essas coisas, suponho, mesmo com ajuda profissional.

Quando você começa a enxergar além de si mesmo, além do seu próprio bem-estar, você começa a entender o sofrimento do outro, as desventuras que ele passa; ou talvez o termo aqui seja, você começa a se permitir entender o sofrimento do próximo, já que creio que, como eu, muitos no Brasil tendem a desligar essa chavinha de empatia por puro conforto perverso, para não se sentirem mal quando tantos morrem, tantos sofrem. E é uma posição forte hoje em dia, esse individualismo destruidor. Mas talvez seja hora de fazermos o reverso, e tentar salvar o que nos resta de alma, pelo bem de todos.


terça-feira, 13 de abril de 2021

Crônicas do Novo Normal: Baile de Máscaras



Em todas as casas brasileiras, tornou-se parte da rotina a lavagem de máscaras em suas respectivas áreas de limpeza. Algo que antes, era visto como um costume pitoresco asiático, tornou-se um cotidiano de milhões de brasileiros - pelo menos os que se preocupam com o próximo e fazem este pequeno esforço de usar a máscara, para o bem de todos e felicidade geral da nação (parafraseando Dom Pedro I). 

Elas vem em todos os formatos e cores, embora o modelo tenha meio que uma indicação só. E até mesmo no começo de nossos isolamentos, houve toda a discussão de qual seria o modelo que melhor protegeria a população, ou mesmo se a máscara seria em si útil. Ao fim e ao cabo, cá estamos, com toda sorte de proteções faciais: recentemente, indo buscar umas compras no portão do prédio, vi um casal  com máscaras azul e rosa, num bonito paralelo de cores bonitinhas. Leveza em meio à angústia, nós temos aqui.

Esses acessórios são um grande aborrecimento para muitos, mas eu confesso que gostei bastante quando começamos a usar. Não pela ocasião, obviamente; mas eu creio que junto com a máscara, veio uma liberdade que eu desconhecia, de mim em mim mesmo. Explico: Percebi que usando a máscara, não só protegia a mim e ao meu semelhante da doença, como também protegia a minha psique. Sou um homem inquietamente tímido, embora não pareça para quem me conhece (os paradoxos da intimidade...). A máscara veio e me permitiu andar sem estar consciente de mim mesmo. E então, me senti em paz. 

É claro que não é algo lá muito saudável, e com certeza eu creio que deva explorar isso melhor com o incansável Dr. Pedro, meu terapeuta. Ainda assim, isso me fez pensar muito, em quantas pessoas se sentem como eu... e quantas máscaras elas usam neste momento. Quando as coisas ficam difíceis e elas sentem vontade de chorar, usarão elas uma máscara para cobrir suas lágrimas? Quando um companheiro ou companheira sentem-se abatidos pela imensidão da morte que nos cerca, usarão eles uma fachada de otimismo e coragem, para que não afundem todos neste desespero? 

Será que nossos dias adiante serão cheios de máscaras, físicas e metafóricas?


domingo, 11 de abril de 2021

Crônicas do Novo Normal: Futuro Imperfeito


Hoje foi o aniversário do meu afilhado-sobrinho, e cantamos os parabéns pela internet. Foi um momento alegre, tecnológico e confuso, porque todos nós acabávamos falando ao mesmo tempo, e o som saia um pouco atrasado lá na casa do jovem Bernardinho, no alto de seus dois anos de idade. A culminância foi, é claro, cantarmos os parabéns cada um em um ritmo cacofônico mas cheio de amor ao pequeno Bê, que parecia interessadíssimo no seu bolo bem à sua frente. 

Isso tudo foi, obviamente, um momento feliz, e que convidava a participar ali, no presente. Mas a cabeça de certas pessoas nunca para de pensar em uma miríade de coisas, e a minha é assim também. Pois enquanto eu batia palmas e desejava felicidades àquela criança, não pude deixar de pensar no mundo que vinha ao encontro dele, mais cedo ou mais tarde. Que mundo é esse, eu pensei. Que coisas virão até ele, até meus outros sobrinhos, até meus futuros filhos. 

Porque veja, muito se fala do "novo normal". Raios, o título geral destas crônicas é exatamente uma referência a isso, a esse novo mundo que surge no momento durante e após a pandemia, aonde teremos de nos acostumar com uma série de coisas novas, nem todas boas. Falamos isso, mas eu não creio que tenhamos exatamente pensado como seria, como será, esse novo jogo que jogaremos, dados na mão, tensos com o que a sorte nos trará. 

Na verdade, eu acho que as pessoas ainda se apegam a que as coisas vão voltar a ser exatamente como eram antes. As mesmas relações sociais, as mesmas despreocupações andando nas ruas. Que quando tudo isso acabar, vamos simplesmente andar nas ruas sorrindo, lambendo postes e comendo comidas da rua sem nenhuma preocupação com vírus e afins.

Já eu, acredito que mesmo os que estão neste momento despreocupados fazendo festas com aglomerações e bingos clandestinos nas caladas da noite de Sampa e sem pensar no amanhã, irão entender que este mundo de antes, de 2019 pra trás, está irrevogavelmente mudado. Muitas pessoas morreram para que ele pudesse continuar o mesmo, é impossível que tanto horror tenha ocorrido e nada se altere. A fábrica delicada da sociedade que acreditava no governo, na bondade geral da sociedade em momentos de necessidade, ou mesmo na invencibilidade da nossa tecnologia contra algo tão supostamente simples quanto um vírus, está completamente alterada. 

Há muito que já tínhamos perdido as esperanças em um futuro melhor, mas creio que ainda havia pelo menos a visão de algo igual, sem mudanças; isso se foi agora. Resta a nós, que temos mais agência que bebês como meus sobrinhos e tantos outros filhos da quarentena e pandemia, nos mexermos e alcançarmos um ponto mínimo de sanidade para eles e para outros que virão. 

quinta-feira, 8 de abril de 2021

Crônicas do Novo Normal: A Chuva sem fim


A chuva tem visitado a cidade de São Paulo com uma certa constância - pelo menos, onde moro. Ali pelas 14, 15 horas, o céu verte suas lágrimas. Da varanda do meu apartamento, eu vejo o horizonte: nuvens carregadas despejando suas águas, o sol uma lembrança distante, a noite mais próxima que nunca. 

Assim é na vida real. Mas é de outra tempestade que estamos falando, uma mais simbólica, que causa uma chuva mais intensa, mais devastadora. Pois para muitos, faz tempo que não é verão, nem primavera, mas sim esse fim de outono - início de inverno que tem se alastrado pelo país, pelo próprio mundo melhor dizendo, no inconsciente coletivo. Como transeuntes, que estão presos em um telhado vagabundo e sujo longe de casa esperando a chuva a passar, olhamos atentamente para o nosso céu interno, e qualquer sinal de diminuir a chuva já nos basta para querermos seguir em frente. Afinal, é preciso chegar em casa e se secar, seja aonde for este lar.

Infelizmente, tal qual estes mesmos transeuntes, sempre nos enganamos: a chuva não pára, pelo contrário, só aumenta. Então começam as buscas pelo sentido da coisa continuar do jeito que está. Muitos culpam Deus nesta hora, e é certamente a desculpas mais fácil, pois elimina toda a culpa do indivíduo. Se Deus quer que chova e eu me molhe, quem sou eu para negar seus desígnios. O patriotismo e a religião são o último refúgio dos covardes.

Alguns outros culpam seus companheiros de telhado, por torcerem para que a chuva aumente (por mais absurdo que possa parecer); alguns outros tentam seguir com guardas chuvas para mais perto de casa, mas é uma água forte, é muito difícil seguir em frente. Mais uns outros ofertam guarda-chuvas para ajudar quem não tem nenhum... às vezes, essas próprias pessoas acabam se molhando por causa desse gesto de caridade.

Tantos gestos, tantas atividades e ainda assim.... a chuva segue incólume, independente de quem seja o culpado e de qual seja sua ação frente à ela. Se pelo menos pudéssemos ajudar uns aos outros, termos mais pessoas interessadas em querer que todos atravessem a tempestade o menos afetados possível... mas não é assim, e não sei se um dia chegará a ser desse jeito. 

E assim seguimos navegando na chuva grossa, incapazes de sequer entender a solidão dos companheiros de sofrimento ao lado. 


terça-feira, 6 de abril de 2021

Crônicas do Novo Normal: Hipocrisia, eu quero uma pra viver.


Em 2015, um estudo feito pela empresa de pesquisa de opiniões Flyfrog tentou determinar o que o brasileiro médio achava repulsivo á sua ética. Para tanto, entrevistou 400 pessoas sobre uma série de ações que seriam ocorrências do dia-a-dia, e propôs uma numeração de 0 a 10, onde 0 é nenhuma repulsa, e 10 completa repulsa. o entrevistado deveria dar sua numeração pessoal para estas ações, e ao fim e ao cabo, somariam-se os resultados e voilá, a média de rejeição surgiria. 

Se você prestar atenção, a pesquisa foi feita em 2015, durante portanto o processo de Impeachment da presidenta Dilma Roussef; seria de se esperar uma citação à corrupção nas ações rejeitadas pela população brasileira, ou pelo menos algum aceno nesse sentido. Certamente alguma ação similar seria apontada como um dos valores mais altos, quase um 9 pelo menos.

E no entanto, quem pensou isso estava enganadíssimo, pois de acordo com esta pesquisa, a ação considerada mais torpe pelos entrevistados foi... aborto. E antes que se pense que há um impulso religioso sincero nesta opinião, diga-se aqui que o adultério recebeu uma nota média de 0,47 , uma nota quase tão baixa quanto conseguiram as ações "receber propina" e "votar em corruptos", que obtiveram a mesma nota: 0,86. Em compensação, a violência à mulher recebeu a singela nota de 3,8, e não prestar socorro à uma mulher que sofreu abuso teve a nota 3,18. 

O que dizer desses dados? Primeiro, que são limitados em escopo (400 indivíduos da classe A, B e C na região Sudeste), e que o tempo com certeza já passou o suficiente para pelo menos algumas dessas noções terem mudado - pelo menos assim espero, embora uma outra pesquisa mais recente tenha apontado uma divisão preocupante. Segundo, que apesar disso, é possível sim dizer algo deste grupo, tão diminuto mas representativo.

Primeiramente, que o brasileiro nunca é contra a corrupção, aparentemente; apenas se irrita quando não leva o seu pedaço de bolo pra casa. Não à toa, dentro desta mesma pesquisa uns dos dados mais baixos envolve dirigir bêbado. 

Em segundo lugar, que o brasileiro é com certeza um falso moralista, dado que parece ter uma opinião muito forte em abortos sem necessariamente ter passado por qualquer parte deste processo; e também que prefere ver a violência da sua janela e comentar depois, à boca pequena, com a mulher que apanhou de seu parceiro sangrando na casa ao lado. 

Pensa-se que a religiosidade influencia muito o comportamento brasileiro. Eu concordo; mas pelos dados acima e tantos outros que vamos vendo surgir em pesquisas outras, maiores até, me parece que o brasileiro no fundo é apenas um hipócrita, que gosta de mandar na vida dos outros, e precisa do verniz do sagrado para poder ter argumentos e se olhar no espelho interno da alma pútrida. 

sexta-feira, 2 de abril de 2021

Crônicas do Novo Normal: Mudança de tempo


Com quase nenhum aviso, o calor sumiu das terras paulistanas e um friozinho veio, com muito vento e muita secura. Nós, que estávamos sofrendo com um calor febril absurdo, demos graças pelo alívio que esta mudança nos proporcionou - embora seja difícil saber se é algo que veio para ficar por um bom tempo ou se é apenas passageiro. Como muitas coisas no Brasil, o tempo anda imprevisível demais, e não se pode confiar em nenhum prognóstico a longo prazo. 

De qualquer forma, o refrigério teve seu preço pessoal para mim, a saber, o retorno de minhas alergias. Como muitas pessoas no Brasil (30%, de acordo com a OMS), sofro de um espirro crônico quando passo pelo frio do outono e inverno - ou mesmo quando sou exposto a qualquer mudança mais brusca de temperatura. É um problema que me aflige desde meus anos de vivência em Belém do Pará, que seria cômico se não fosse trágico: explicar que minhas tosses secas e espirros repentinos não são covid-19 para meus alunos aterrorizados via webcam. 

É claro que isso é uma mudança (e uma problemática) ínfima no esquema geral das coisas, com tantas mudanças intensas neste mundo mid-covid. Acabamos de começar o mês de Abril e por essas alturas, em plena época de Páscoa, seria para estarmos planejando na casa de quem aconteceria o almoço de feriado, as "Comer-morações", como costumo dizer. É quase certo que fossem ocorrer na casa de minha sogra querida, Dona Sandra, e talvez até com a presença de meus pais, vindos da distante terrinha. No entanto, cá estamos, cada um em seu abrigo, e tudo que nos resta são ligações online e longas conversas virtuais. 

(Que são boas, não me entenda errado: apenas, carecem daquele calor intenso que a pessoa sente nos lugares onde é amada)

Abril e Maio são normalmente épocas de preparo também para as festas juninas, que aprendi a gostar graças á minha esposa, apaixonada que é pelas coisas do campo. No entanto, este parece ser mais um ano onde elas, as festas, não ocorrerão, infelizmente; como também não aconteceram as reuniões de aniversário em família, os almoços de Domingo, as visitas-surpresa, os picnics nos parques mais próximos. Coisas tão pontuais, e tão sentidas quando desaparecem, ainda que temporariamente. 

É sempre nas menores coisas que surgem as dores maiores. 


quinta-feira, 1 de abril de 2021

Crônicas do Novo Normal: O que aconteceu com o mundo do amanhã?



Em 1964, entre 31 de Março e 1 de Abril, o Brasil sofreu um golpe militar. Muitos, depois que esse período passou, insistiram em chamar o movimento que ocorreu de Revolução. Mas como fazer isso sem uma grande carga de cinismo (ou, na melhor das hipóteses, de ignorância) em sua alma? Certamente, foi um Golpe, e um que foi apoiado pelos EUA, que hoje gostam de brincar de defensores da democracia. 

O apoio não veio só do país americano; muitas pessoas da própria política aqui dentro deram seu suporte, bem como muitas outras pessoas na sociedade, com suas marchas da Família (que família?) com Deus (que Deus?) pela Liberdade (de quem?). Isso foi usado no futuro como evidência que a população em peso queria que o golpe acontecesse, quando em verdade foi um movimento com origem e desenvolvimento no seio dos empresários, que sentiram medo de um governo com maior Justiça Social do que poderiam aceitar. Assim, veio a Marcha, veio o apoio dos políticos, e o Golpe se concretizou, e durou por 21 longos anos. 

Em 1985, de forma torta e incompleta, veio o fim da Ditadura Militar, também seguida de todo um apoio interno, até mesmo por quem antes apoiava o próprio golpe. Muitos enxergaram nisso uma mudança para melhor, mas acho que era tão somente os metafóricos ratos fugindo do navio em decadência. Esse é um efeito muito comum na política mundial, e de fato é possível ver exemplos disso no momento atual mesmo. De qualquer forma, as coisas mudavam, e talvez para melhor. Por que não? Certamente estávamos seguindo um bom caminho, com o fim da censura amparada pelo Governo, o retorno dos direitos políticos, das eleições, uma Nova Constituição...

Então, passamos pelos anos 90, 2000 e 2010 sempre buscando ver os avanços. Havia sempre, é claro, os problemas. Nos anos 90, a inflação do Brasil foi épica, e mesmo nos governos posteriores tivemos problemas sérios de corrupção, econômicos, de segurança, Contudo, havia sempre, secretamente, uma esperança no futuro. Certamente, pensávamos, os anos que virão serão melhores. Certamente aprendemos com estes erros e com os do passado, quando o fascismo nos conquistou sombriamente. 

Eis que estamos em 2021, e eu nem sei dizer se quando eu publicar esta crônica, teremos ainda realmente um governo democrático. Os símbolos, como temos aprendido amargamente, não morrem quando queremos, e os que idolatram a violência autoritária dos governos militares preservaram muito bem a memória de seus ícones. E cá estamos, com pessoas pedindo sem pestanejar intervenções militares em Brasília (uma delas, o próprio presidente da república eleito). E o futuro que imaginávamos? Não carros voando, ou roupas coloridas e autolimpantes. Onde está a crença que nós melhoramos? Que os erros passados não mais se repetiriam, nem de perto? Onde está o nosso mundo melhor? 

Está perdido. O futuro não é mais como era antigamente. 

E por isso, ultimamente, eu ando meio deprimido.