Existe um fantasma rondando a população brasileira. Ou melhor, existem vários, e um deles inclusive é presidente; mas o que me refiro hoje é algo bem mais sutil, embora possa ser nocivo a longo prazo: a fetichização do sofrimento.
Acho que talvez possamos culpar o passado estritamente católico de nosso colonizadores, quando vemos por exemplo as pessoas chegarem e dizerem: é assim mesmo, tem que sofrer para poder chegar em algum lugar. É a filosofia do remédio amargo: se o xarope que tomamos não tiver gosto ruim, será que ele está curando mesmo? Não será sofrer que traz a cura? E com esse pensamento, nos sujeitamos a muitas coisas terríveis, no âmbito pessoal e profissional.
Sim, quem não ficou um tempo terrivelmente longo numa relação que não tinha futuro nenhum, só porque "meus avós também não se davam bem no começo, e ficaram juntos por 50 anos"? Quem não trabalhou por um salário de miséria, podendo conseguir algo melhor, porque "aqui que me deram a oportunidade, talvez eu consiga crescer ainda mais se tiver paciência". Paciência, essa palavra-armadilha! Quantas almas não se perderam dentro de uma areia movediça metafórica, esperando pacientemente o momento certo acontecer?
Mas o principal endeusamento que eu me refiro hoje é muito da ideia, particularmente entre a camada mais jovem da população, que aqueles que vivem uma vida considerada mais simples por eles, vivem melhor e com mais liberdade. A falsa ideia da "liberdade romântica dos marginalizados".
Eu até posso entender essa linha de raciocínio se considerarmos, sei lá, uma vida no campo, onde a pessoa esteja realmente buscando uma vida diferente, bucólica e cheia de trabalho, mas bem diversa da cidade. A questão aqui é que a maioria das pessoas que dizem querer viver, digamos, de trabalhar num bar e "apreciar a noite" esquecem-se que um determinado garçom tenha que, por exemplo, varar a noite trabalhando e rezando por gorjetas, só para sobreviver. Ou que aquele sonho de ter uma livraria underground está grosseiramente enterrado pela necessidade de vender livros ou afogar-se em dívidas.
Eis o sonhador acéfalo de nossos tempos: pouca prática, muita minhoca na cabeça, e quase nenhum fruto. E quando chega a hora de pensar e lutar por coisas válidas (como melhorias específicas na sociedade, ou pelo menos na própria cidade), eles pensam que, já que seu sonho oblíquo não deu certo, nenhum mais dará. E tornam-se niilistas amargos e chatos.
Ainda assim, eles renderam já muitas risadas e esta crônica, então, eu digo: um brinde, amigos, com aquele litrão que você diz adorar mas na verdade prefere é uma Heineken!
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