domingo, 30 de maio de 2021

Crônicas do Novo Normal: Pelo direito de mandar seu parente à merda


Todo mundo tem um parente assim. Aquele cara que você meio que tolera durante as reuniões familiares, afinal, é família, então, tem que ter paciência, não é? ás vezes não é um cara, é um grupo todo; às vezes, de fato, a pessoa que é dona da casa onde está ocorrendo a tal reunião de família é quem você está tolerando -e portanto, você é quem está na minoria. Ainda assim, é Natal/Páscoa/qualquer outro feriado onde se pratica a falsidade familiar com estes parentes, então você respira fundo, e pensa no jantar/almoço/lanche. que com certeza estará delicioso. 

Esse era o modus operanti até recentemente, estou certo. Em nome da boa convivência e do respeito, muitos de nós estávamos simplesmente seguindo a vida, indo em almoços de Domingo, sentando e ouvindo baboseira atrás de baboseira.  Aliás, "baboseira" é um termo leve: ouvíamos coisas realmente agressivas daquele primo por parte de pai ou mãe, que já estava velho então falava essas coisas mesmo, mas tem bom coração; ou talvez daquele tio-avô que defendia extermínios em massa ,e todo mundo dava u risinho amarelo e seguia comendo, ou tentando ver o Faustão de branco na TV durante o ao novo.

Bem, cá estamos, e esses parentes parecem ser os elementos que estão no poder no Brasil atualmente. Muito se fala sobre eles serem os principais responsáveis na escalada ao Planalto do péssimo governo que temos hoje em dia; eu não concordo com isso, acho que a culpa envolve na verdade um grande número de outros fatores, conforme já falei em outras crônicas. Dito isso, com certeza eles fizeram sua grande contribuição nesse acontecimento, talvez até com aquela bombardeada de fake news bonita que assolou as últimas eleições. E com todas as mortes, toda a assolação que está ao redor, eles ainda tem a petulância, a cega petulância, de dizer que está tudo bem. 

Ora, essa postura com certeza implica em mau-caratismo, porque não é possível considerar que um governo onde mais de 456 mil pessoas morreram sem necessidade (já que vacina havia, só foi solenemente ignorada pelo séquito bolsonarista); onde uma nova variante ainda mais letal entra no país e a única desculpa da ANVISA para isso acontecer é que "o passageiro com o vírus disse que não tinha sintomas de covid"; ou aonde o presidente da república a cada dia diminui, zomba, espezinha da doença e de seus mortos, seja considerado um governo onde tudo "está bem". 

É possível, é claro, dizer que a pessoa que defende esse governo sofre de transtorno mental: a esses, peço sinceramente que busquem ajuda o quanto antes. Em relação aos que não estão nessa situação, eu digo, amigo leitor: mande-o solenemente à merda. Não vai ajudar o país, não vai resolver a falta crônica de vacinas, não vai aumentar o número de leitos; mas com certeza vai lavar sua alma, que vai ficar limpa, serena. Além do que, haverá a vantagem de não ser mais convidado para esse tipo de reunião, que eu sei bem que você nunca gostou; se gostasse, não teria voltado mal-humorado toda vez para casa. 

Esse pessoal mais conservador gosta de citar Deus e a bíblia para justificar seus atos, então termino com a seguinte citação: Jesus disse que não veio trazer paz, e sim a Espada; que ia separar o filho de seu pai, a filha de sua mãe, a nora de sua sogra. Ou seja, mandar aquele primo, aquele tio/tia, aquele parente distante á merda, amigo, com certeza é caminho divino. Ide em paz e que o senhor vos acompanhe. 



terça-feira, 25 de maio de 2021

Crônicas do Novo Normal: Velas na Escuridão


Mr Rogers, talvez uma das pessoas mais admiradas por seu altruísmo nos EUA, era o apresentador de um programa infantil por lá. Ele fez uma série de coisas notáveis em sua vida, entre as quais convencer o senado americano a não diminuir o investimento no canal público aonde ele exibia seu programa (o discurso aonde ele convence o Senado é fantasticamente irreal por ser real, vale a pena ser visto). Ele foi um homem que viveu bastante, e chegou a ver os atentados de 11 de Setembro lá. Como sempre preocupado no impacto que isso causaria nas crianças, ele se propôs a tentar acalmar elas em seu show, numa explicação que culminou na seguinte frase:

"No momento do caos, procure quem ajuda. Procure os que ajudam o outro".

Não fui uma criança que cresceu com os programas de Mr Rogers, brasileiro que sou. Contudo, não posso negar o efeito que essa frase em particular causou em mim.

Quando digo "brasileiro que sou", acredito que muito dos meus leitores entendem bem o que digo: O Brasil é um país de cínicos. Não tente dizer que não, porque é. Os valores que aprendemos enquanto sociedade envolvem claramente tentar perceber quem está tentando nos enganar, e se possível enganar essa pessoa primeiro - ou na pior das hipóteses, tentar sair com o mínimo de dano possível. Não creio que haja um esforço nacional em se criar algo diferente disso, até porque realmente há um grande número de pessoas que estão tentando nos passar a perna, mesmo se não contarmos os políticos. 

O efeito disso é óbvio: pessoas sem esperança no outro, e até na verdade desejando serem elas mesmas as espertas, desprezando quem não enxerga o mundo desse jeito, vendo pessoas assim como fracas. Aquele que ajuda então, ou é maluco, ou está tentando tirar vantagem. Pode apostar que essa é a primeira coisa que surge na cabeça de um brasileiro: que não existe o almoço grátis. 

E no entanto... no entanto existem sim os que ajudam. Existem sim, entre nós, almas boas. Poderia citar aqui exemplos famosos como o Padre Júlio Lancelotti, com um trabalho exemplar aqui em Sampa; ou o vereador Eduardo Suplicy com sua eterna luta pela renda básica universal; mas eu queria realmente aqui destacar as pessoas que não tem tanto nome ou presença na mídia, as pessoas que ajudam no dia-a-dia de lutas que temos em nossas vidas - já que a nossa vida é feita de um dia após o outro. 

E essas pessoas estão por aí, mesmo nessa pandemia maldita, que ceifa vidas. São pessoas que se preocupam em coletar roupas usadas para entregar aos moradores de ruas, neste inverno que está chegando brabo; são médicos que vão além do que é esperado deles, e conseguem a duras penas marcar consultas para pacientes que precisam urgentemente ver uma mancha anormal na pele; são religiosos que tentam levar comida e consolo para os moradores de rua em Santos e em todas as cidades do brasil; são comediantes que se mobilizam para conseguir o que o Governo Federal se recusava a fazer, que é cuidar da sobrevivência dos que necessitavam de algo tão básico que era oxigênio.

Então, que essa crônica seja um ode a estas pessoas, e uma luz para nós, tão acostumados que estamos a esperar o pior do outro, a esperar o inferno dele. Não existem pessoas perfeitas - dado que perfeição ão é uma característica humana. Mas com certeza, existem mais Mr Rogers por aí. Existem mais "pessoas que ajudam". Olhemos para elas, e tentemos imitá-las.

Esta crônica é dedicada ao reverendo Leandro Antunes Campos, Presbítero da Paróquia Anglicana de Santos, que se encontra em observação por suspeita de Covid. Peço a todos que puderem orações e pensamentos positivos pela sua pronta recuperação.



domingo, 23 de maio de 2021

Crônicas do Novo Normal: Berserk Tears

Fonte: Pinterest


"Ao longo da minha vida, os momentos e as pessoas que me definiram ... todos foram iluminados por faíscas."

Não sei se as pessoas se perguntam das origens de um fã de animes e mangás, mas muitas vezes  elas tendem a ser mais insólitas do que parece. Por exemplo, sei que muitos fãs das produções culturias nipônicas começaram seu gosto por cavaleiros do zodíaco e/ou Yu Yu Hakushô, os dois trbaalhos extremamente imaginativos, que incendiaram mentes juvenis tempos atrás. 

Sou talvez um pouco mais velho nesse sentido: meu gosto pela cultura japonesa televisiva vem de tokusatus como Black Kamen Rider, Flashmen, ou Changemen. Não sei dizer sinceramente qual canal eles passavam - a mente me diz que era Manchete, mas posso estar bem errado. De qualquer forma, esses foram meus primeiros portais para esta vasta  produção. 

Estas produções são legais, mas chega um tempo que você precisa de algo a mais. É um resultado natural da maturidade: você cansa de ver apenas bonecos se batendo por se bater, e começa a querer ver sentidos nas coisas, reflexões, dramas humanos se desenvolvendo. 

(Tudo isso, é claro, com bonecos se batendo também, mas não divaguemos.)

Para muitas pessoas, muitos caminhos; estou certo que cada um de nós que lemos mangás e vemos animes encontrou sua obra específica. No meu caso, depois de um breve flerte com Evangelion ( pelo qual também tenho grande apreço) foi Berserk quem me introduziu no mundo dos mangás e animes "de adulto", os chamados Seinen. 

“Neste mundo, será o destino da humanidade controlado por alguma entidade ou lei transcendental? Como se houvesse a mão de Deus pairando acima de nós?"

Não vou mentir: O que me levou a querer ver o anime (antes de ler o mangá), foi o fato de ter um cara com uma espada gigante. Guts, o personagem principal da série, é o típico herói de ação medieval sombria: Em uma missão de vingança, extremamente violento, com força sobrehumana. O que não haveria ali que um adolescente de 13 anos não gostaria? E é assim que a obra começa: Ultraviolência e, sangue e caos. Mas aos poucos, a cada volume que se vai lendo.... você percebe o que o autor quer realmente passar. Você se sente tão cansado da carnificina quanto o personagem principal. E você percebe que talvez a cólera, não importa quão justa seja, talvez seja uma força que possa destruir tanto o alvo de sua fúria, quanto as pessoas ao seu redor, que se importam com você.

"O ódio é um lugar para onde vai um homem que não suporta a tristeza."

Muitos dos que leem esta obra não avançam tanto na mensagem, mesmo tendo lido todo o material. Somente veem um homem forte com uma espada, e sonham com a vingança futura dele contra quem destruiu sua vida. Mas eu penso diferente, e estou certo que muitos outros fãs concordam: Berserk nunca foi uma obra de horror pelo horror. Ela foi, por incrível que pareça, uma obra de esperança, onde o autor jogou todos os horrores possíveis na vida do personagem principal, e ele ainda assim persistiu, manteve-se de pé. E isso em si já é uma vitória, ainda mais nos dias de hoje.

No dia 06 de Maio, o autor de Berserk, Kentaro Miura, faleceu vítima de uma fatalidade cardíaca. Com ele, foi-se o fim da obra que ele dedicou sua vida, e seu talento incomensurável. Contudo, não pensemos neste momento na obra inacabada (que ainda assim, é um clássico e merece ser lida): choremos aqui a partida tão cedo deste grande mestre, que ensinou a mim e a muitos outros o valor de uma obra ficcional em nossas vidas, a força de um símbolo de determinação. 

Obrigado por tudo, Miura-sensei. 

As frases em itálico são trechos diretos do mangá.


Fonte: Youtube


quinta-feira, 20 de maio de 2021

Crônicas do Novo Normal: Bolsonaro, o outro Filho do Brasil

Fonte: Finantial Times



Em 2018, Jair Bolsonaro foi eleito com 55,13% dos votos válidos, derrotando seu oponente, Fernando Haddad, que conseguiu 44,87% dos votos. Desde desse momento, houve uma grande preocupação em se entender como isso aconteceu; desde o grande número de pessoas que resolveram não votar em nenhum (mais de 30 milhões, realmente um número significativo), até a ideia de que a esquerda estava esfacelada e não levou a sério a ascensão de um movimento de extrema-direita no país. 

Todas essas são opções não só válidas, como certamente são parte da verdade como um todo. Contudo, não podemos deixar de analisar o seguinte: quase 58 milhões de pessoas votaram em Bolsonaro, isto é, escolheram ele e seu desprojeto de governo como o mais relevante para o país naquela época, naquele período de crises. Pode-se culpar a mídia por enganar as pessoas, pode-se falar de fake news... mas além disso tudo, será que não devemos também olhar para o fato que Bolsonaro representa, sim, uma grande parcela da sociedade brasileira? 

E veja, eu entendo. É difícil engolir isso, que parte das pessoas no Brasil pensem que uma pessoa que apoia a tortura, o assassinato, e o desvio absurdo de dinheiro sob o desígnio de comprar leite condensado, é realmente o candidato mais indicado para governar o Brasil. De fato, muitos podem dizer que as pessoas acordaram agora para o que é Bolsonaro de verdade, como se antes ele escondesse o que era (nunca escondeu, nisso ele foi sempre bem direto). Esse pensamento tolo pode ser facilmente combatido com os dados que mostram que a aprovação de Bolsonaro, mesmo sendo menor que a reprovação, ainda é de 36% nas pesquisas mais recentes, e de fato cresceu nos últimos 15 dias

Nesse período, diga-se, o Brasil chegou em mais de 440 mil mortos. Ou seja, mesmo com a morte a galope pelo país, o  índice de aprovação deste homem é relativamente alto ainda.  Por que isso tudo? Qual o motivo da relativa estabilidade de apoio a Bolsonaro? Estaríamos nós sendo muito pessimistas, considerando apenas o lado negativo desta moeda terrível que observamos?

Eu penso que não. Acho que na verdade, estamos sendo otimistas demais, e talvez seja hora de encarar isso de frente: uma porcentagem significativa de brasileiros apoia o bolsonarismo, acha que ele atende suas expectativas, quer mais dele. Nesse sentido, Bolsonaro é tão Filho do Brasil quanto Lula, mas é um filho diferente, nascido do egoísmo e brutalidade das classes dominantes, da corrupção e violência. E estes elementos são sim, parte dominante no Inconsciente Coletivo da nação da brasileira 

Mas não são os únicos pontos deste Inconsciente. Existe a luta interna pela alma do País. A questão é: como fazemos para ganhar o combate? E o que garante que ele vai acabar em algum momento? 

domingo, 16 de maio de 2021

Crônicas do Novo Normal: Flores de Plástico



Quando eu era criança, percebi um estranho fenômeno que acontecia com os desenhos que eu curtia: cada vez que um deles fazia um sucesso razoável, era certo que apareceriam dois, três, 100 outros desenhos que tentassem imitar alguma coisa da produção anterior. Para cada Tartarugas Ninjas, havia um Motoqueiros Ratos de Marte ou algo assim; para cada cavaleiros do Zodíaco, um Samurai Warriors, e assim sucessivamente. 

O motivo disso acontecer era um mistério para meu eu infantil, mas é claro que o tempo e a maturidade me ajudaram a perceber que o que acontecia ali era, pura e simplesmente, ganância, a corrida pela nova "mina de ouro" do entretenimento. Não é que houvesse um interesse em especial dos produtores em se propagar a mensagem ou o estilo ou o que fosse da obra original; na verdade, eles mal entendiam bem o que fazia desta algo bom. Simplesmente copiavam o que conseguiam e torciam por um sucesso econômico. Pura lógica do mercado. 

Por anos, eu pensei que isso se aplicava apenas à indústria do entretenimento (já que vi o padrão se repetir em jogos,  filmes, etc). Em 2013, porém, foi quando tive minha verdadeira lição sobre falsidades, e de como outros se aproveitam dela, sem entender a mensagem original. 

Se você lembra bem, 2013 foi o ano dos protestos, o ano que uma briga pelo aumento de passagem em São Paulo estourou em movimentos por  todo o país, e, muitos dizem, culminou na total sacanagem que hoje estamos .Não que se soubesse disso na época, ao contrário: de fato, confesso que eu mesmo acreditava no movimento, ao ponto de cobrir pelo twitter as passeatas que ocorreram em Belém do pará, e de participar de rodas de discussão em plena Praça da República (lugar que muitos conterrâneos confirmarão, NÂO é o melhor para se ter discussões em rodas, quanto mais não seja pela chuva iminente da região). 

Minha crença se estendeu até o dia que vi anúncios de lojas de roupa com "roupas para protesto", quase uma nova tendência, a Chique Rebelde: bandanas de anarquia, camisas pretas vestidas em manequins de punho levantado, tênis especiais para caminhadas longas... a total deturpação de um movimento que já estava fazendo isso muito bem por si só. Aquilo me aturdiu bem fortemente: percebi que a partir do momento que já haviam até roupas sendo vendidas para protestar, aquilo efetivamente derrotava o protesto antes mesmo dele começar a marchar; Nada é mais pró-mercado que comprar seu Kit movimento em 6 vezes sem juros. 

E foi aqui que o círculo se fechou, pois percebi que, tal qual os desenhos que surgiram para copiar os primeiros que fizeram sucesso, também ali se criava um neomovimento, sem alma, sem pensamento em cima do que se estava buscando, só caos pelo caos, ou pior, pelo retrocesso, pela virulência dos idos dos anos 60/70. A revolta era tão real quanto a de um personagem de desenho, quando dublado para sentir raiva. 

Nas costas dessa falsidade, construímos nosso país atualmente. Não é novidade nenhuma: O brasil sempre foi um país baseado na mentira, nas falsas impressões na enganação. E por isso hoje seguem os dias, com pessoas clamando por isolamento social ao mesmo tempo que saem e fazem festas; políticos exigindo respeito à constituição que eles mesmos rasgaram; cristãos que rezam direitinho na hora do culto e zombam direitinho do sofrimento alheio, daquele que deveria ser seu próximo. 

No brasil, tentam nos dar flores de plástico e forçar-nos a dizer que as mesmas tem perfume. 

quarta-feira, 12 de maio de 2021

Crônicas do Novo Normal: O sol e a peneira


Domingo passado, eu não consegui dormir, por um motivo completamente além da minha vontade: meu vizinho de rua estava dando uma festa com o melhor dos anos 80. Registre-se aqui que ele mora em uma casa, e eu moro no oitavo andar de um prédio: por aí já dá para ver o quão alta estava a música. Seguindo pelas ruas naquele momento silenciosas do Rio Pequeno, era quase uma boate perdida no tempo, com Queen, Abba e A-ha tocando em alto e bom som. 

Normalmente eu estaria feliz pela seleção de músicas deste meu vizinho: porém eram aproximadamente 10 da noite de um domingo, eu precisava dormir para dar aula no dia seguinte e ele não demonstrava sinal de querer parar a festa, Além disso, caso não o leitor não se lembre, estamos ainda em plena pandemia: eu não podia afirmar com certeza, mas me parecia difícil que ele faria uma festa com música alta e churrasco (aos 17 graus!)  só com seus pais e cães. A aglomeração, portanto, era certa.

Enquanto ele festejava, pensei sinceramente em ligar para a polícia, no que fui dissuadido pela minha esposa: não valia a pena, melhor seria tentar dormir e seguir em paz. Fui convencido: e o vizinho seguiu em sua festa até exatamente 2:27 da manhã (eu sei porque eu não consegui dormir, é claro), quando o som parou misteriosamente (e piedosamente) no meio de uma música do Jota Quest. 

Fiquei pensando no que teria parado a festança. teria sido a polícia? Algum vizinho outro que tenha se vingado e cortado a luz? Um flash de sanidade em meio à tentativa do festeiro em afogar os gritos da morte ao seu redor em música, carne e bebida? Quem pode saber: o fato é que finalmente consegui dormir, e tive de acordar às 7 da manhã, completamente quebrado de tal forma, que só recuperei o sono dois dias depois. 

Durante o padecimento de se ouvir pessoas gritando hinos dos anos 80 a plenos pulmões, também fiquei pensando nisso, nessa vontade de se ignorar o mundo, o horror ao redor, e simplesmente mergulhar no hedonismo. Um conhecido meu disse que confessa desejar ser mais assim um pouco, poder esquecer os problemas gritantes ao redor. Eu mesmo acho isso uma tremenda estupidez, e de certa forma até uma chave pra entender como chegamos no ponto que estamos com a Covid; Tantas pessoas tentaram negar a gravidade da situação, que ela se fez insustentável, inegável. 

E no entanto, eis aí meu vizinho fazendo a festa, provando que dá sim para se negar o óbvio ululante. Talvez seja esse o verdadeiro espírito brasileiro: negar até tudo ser insustentável de verdade. Se for assim... temo pelo futuro. 

Ou talvez eu só esteja de mal-humor por ter dormido mal. 

sábado, 8 de maio de 2021

Crônicas do Novo Normal: Crianças Mortas


De acordo com a CNN, desde o começo do ano de 2021 já foram registrados mais de 420 óbitos de bebês no Brasil em decorrência do Covid-19. Entre crianças de 1 a 5 anos de idade, o número de mortos foi de 207, o maior número de mortes nesta faixa etária. De fato, este número é quase quatro vezes maior que nos EUA, que também passam uma das maiores crises sanitárias com o Covid: ali, o índice de mortes  foi de 52 infantes. 

Com certeza esse é um número que deixaria qualquer país embasbacado, para dizer o mínimo, e horrorizado, para dizer o certo. A morte de uma criança é a morte um pouco do futuro, do mundo que virá. É menos uma visão que vai moldar esse tempo à frente, é menos uma pessoa que possa contribuir para que as coisas fiquem melhores. Mais que isso, na verdade: é a morte de uma inocência, de um descobrimento do mundo. É a comprovação que o mundo não é somente neutralidade perante nós: é garras e dentes em forma de planeta, devorando quem puder, sem piedade. 

Mas talvez estejamos sendo críticos demais ao planeta em si, quando na verdade os maiores matadores de crianças são os próprios humanos. E como o Brasil está cheio deles, desses matadores! Temos acompanhado dolorosamente o martírio que sofreu o pequeno Henry Borel, cruelmente torturado e morto. No dia 16 de abril, o menino Kaio Guilherme sofreu o  que parece ser  a frequente tragédia de ser criança pobre no Rio de Janeiro, levando um tiro quando estava na fila para pintar o rosto. Isso sem falar dos casos, quase diários, de jovens baleados, mortos, levados de helicóptero para ocultarem provas dos tiros da polícia.

Dizem que o Brasil é o país do futuro. Não sei dizer desde quando eu ouvi isso, talvez desde que este meu presente era, de fato, algo ainda por vir. Mas não posso acreditar mais nisso; a promessa que sempre se descumpre não passa de enganação, de lorota. E como pode ser que desse país algo que vai ser esplendoroso surja no futuro, quando o que mais se faz é eliminar essa esperança, esse amanhã? 

Se nós queremos um futuro, temos que fazer alguma coisa para que parem de matá-lo. 



quinta-feira, 6 de maio de 2021

Crônicas do Novo Normal: Pessoas, Coisas, Representações

Fonte: Site Jovem Pan

Morreu anteontem o comediante Paulo Gustavo , e as pessoas na internet ficaram profundamente sentidas. Isso tem causado alguma surpresa em alguns, como se já tivessem esquecido todas as vezes que alguém mais famosos morreu e as pessoas tiveram uma reação muito parecida. Me pergunto se essa surpresa toda vem de um lugar de desconhecimento mesmo, ou de pura e simples antipatia, já que parece ser crime ser afetado por mortes hoje em dia. Tentando ser otimista, considerarei ser a primeira opção o caso destes que dizem "ué, agora ele é um mestre?"

Mas eu confesso que essa morte me fez pensar muito também, sobre quando as pessoas não são mais as pessoas que vemos em si, e as coisas não são mais as coisas  que temos em mãos. Explico: às vezes temos um objeto favorito, certo? Uma caneca, um livro, algo assim. E quando nos perguntam por que aquele objeto em especial traz tanto conforto assim, não sabemos explicar. É quando caímos na armadilha: tentamos explicar os mínimos detalhes do objeto, sua procedência, como esta coisa realiza sua função. Mas toda essa explicação não vai chegar, nunca, no que exatamente o utensílio representa para você. 

Com as pessoas acontece algo muito parecido: por vezes você encontra alguém, e a sensação é de total empatia. São pessoas que você sente que poderiam muito bem ser suas amigas em muito tempo, talvez até mesmo membros de uma família que só existe na sua cabeça: a mãe que nunca se teve, o irmão que sempre se quis ter. Você pensa isso, mas também não consegue explicar direito porque, ou pelo menos não de uma maneira que não soe copiada diretamente de um especial da Malhação. Isso porque estamos falando aqui de emoções, sentimentos, e frequentemente palavras atrapalham muito na expressão das sensações que temos. E no entanto, só temos elas para isso! 

Como isso chega em Paulo Gustavo?  Por causa de uma conversa que tive com Aline, minha companheira contra o mundo. Falávamos da morte deste ator, quando ela me disse algo que me tocou profundamente: - Parece que as pessoas estão mais sentidas com a morte dele, porque ele pôs uma cara nas vítimas. Ele era uma pessoa que tinha uma grande admiração da maioria das pessoas no país, e com a morte dele por Covid, talvez as pessoas estejam vendo, de novo, a representação das mais de 400 mil mortes no país....

Não pude deixar de concordar com ela. O papel de um comediante como ele, é muitas vezes de nos fornecer esperança, conforto e uma fuga dos desafios da vida. Mas ele não era só um comediante (como quem viu a trilogia minha mãe é uma peça bem sabe): Ele também era um ator talentoso. E enquanto ator, ele tinha (e tem, posto que sua obra nunca morre) o dom de nos provocar emoção, pensamento, discussão, consciência . Talvez tenha sido esse o papel final de Paulo Gustavo: o de emocionar quem ainda não tinha se tocado pelas mortes de tantos e tantos. 

segunda-feira, 3 de maio de 2021

Crônicas do Novo Normal: Cinco tensões e um elogio ao vento.



Quando se vive em  dias tão sinistros, acho que é comum pensar que o mundo é grande demais para nossas mentes tão pequenas. Que os acontecimentos são muitos, e nós poucos para enfrentá-los. 

Confesso que não é a primeira vez que este tipo de pensamento me envolveu com seus tentáculos sufocantes. De fato, nos últimos meses, devo ter me sentido assim pelo menos umas 3, 4 vezes, isso sem contar com o ano passado, no começo desta insanidade toda. Muitas coisas estavam, e estão, acontecendo ao redor do mundo. E eu acabei tendo um camarote involuntário para tudo isso: como professor de inglês, é meu dever fazer a curadoria de vídeos de notícias para as atividades de listening dos meus alunos - e aí toma receber notícias ruins, e exemplos do Brasil como algo a não ser seguido, e pessoas seguindo as regras de isolamento só quando lhe dava na telha, etc. 

Como se vê, é uma situação de enlouquecer qualquer um, e de fato eu quase enlouqueci. Não estou brincando: houveram momentos que eu realmente senti que minha cabeça não conseguia mais raciocinar direito, e que eu sonhava com as notícias, sem ter paz mesmo no sono. Se não tive uma estafa mental aguda, foi graças ao apoio amoroso de minha esposa, e o trabalho árduo do Dr. Pedro, meu terapeuta, o qual recebe muito menos do que merecia pelo trabalho que tem comigo. Isso tudo, mais uma decisão de diminuir as notícias quando não fosse necessário trabalhar com elas em inglês, me fez recuperar um pouco o chão de sanidade que me restava. 

Como tudo que é bom dura pouco, ultimamente eu tenho sentido exatamente a mesma coisa voltando, e nem posso culpar as notícias por isso mais: tenho tido o cuidado de até mesmo procurar outros vídeos para os meus alunos que não sejam diretamente sobre o Covid (creio que eles tem o suficiente disso no dia-a-dia). Não, o problema aqui é muito mais interno que externo; é um turbilhão emocional, e não mental, embora acabe se tornando o segundo por pura e simples pressão das emoções, essas desqualificadas. 

Assim como eu, você que me lê deve sentir algo parecido: saudades da família; de ir ao parque sem se preocupar se isso pode ter sido uma sentença de morte; de poder esticar do trabalho para um cafezinho, uma biblioteca (bom, eu estico para bibliotecas, não sei você). Tudo isso adiado at eternum, até que alguém faça alguma coisa, acelere nossa cura, nos deixe viver novamente. Tudo isso, enquanto ao nosso redor as mortes se acumulam, céleres e caóticas. 

E com isso, descobrimos que não se precisa ler notícias para ser angustiado nesse mundo. Tal qual um horror cósmico de Lovecraft, ele é grande demais e horrendo demais para compreendermos tudo - e disso vem o nosso sofrimento. Quisera, nessa hora, ser como o vento: soprando, livre, sem pesos que o derrubem, e sem toda essa dor que nos acompanha. 

Para ouvir: https://www.youtube.com/watch?v=ijcTx6vBoJw

domingo, 2 de maio de 2021

Crônicas do Novo Normal: Uma marca no mundo



Na minha família, temos muitos escritores e amantes de literatura em geral. Minha mãe e meu pai são escritores publicados; minha esposa é com certeza a maior conhecedora de literatura latino-americana que eu tenho o prazer de poder ouvir; eu mesmo sou um projeto de escritor aqui, com estes rabiscos que ouso chamar de crônica.... enfim, todos temos um amor pelas letras, e pelo que elas podem fazer-nos sentir e pensar, ainda mais nestes "tempos cinzas", como minha mãe chama. 

Falo disso para contextualizar nossa conversa de hoje (sempre falamos um com o outro aos fins de semana, via ligação de vídeo): meus pais e nós aqui em casa falávamos de contos e crônicas que gostamos de escrever e ler, e ao mesmo tempo falávamos das peripécias que nosso animaizinhos fazem, gatos e cães. Minha mãe, que já tem um livro infantil falando de um de nossos pets (Memórias de 4 patas é o nome da obra, a propósito). disse o seguinte então, a respeito disso: 

- É bom a gente escrever isso, né, essas coisas que acontecem dos nosso bichinhos e da gente. Porque fica de memória, sabe, fica de lembrança de como eles eram, de como eram as coisas....

A conversa depois seguiu para outros pontos, mas não pude deixar de ficar pensando nisso, no peso que isso carrega, talvez mais do que a pessoa que proferiu a frase tenha sequer percebido. nesse momento, lá fora, existe uma pessoa que faz algo, e seu filho vai lembrar pro resto da vida. Um gesto, uma canção, uma forma de cortar o pão: marcados, por resto da vida. E essas coisas somem, com o tempo, as preocupações, a morte. 

Se os animaizinhos, que tanto nos encantam a vida, merecem ter sua vida registrada, por que não as pessoas? Acho que até mais, dado o impacto ser nitidamente maior. E talvez o registro não precise ser escrito: a marca de uma vida bem vivida pode ser um filho/filha que cresceu e seguiu no mundo, sendo bom, deixando coisas boas. Ou um parque construído para as crianças brincarem, como no filme de Kurosawa Viver. Ou uma coisa ainda mais singela, uma lembrança que causamos em alguém, aleatório, na rua, e que faça a pessoa sorrir num momento bobo desse, que nos sentimos satisfeitos sem saber por que. 

A vida é feita desses momentos pequenos. Às vezes esperamos as coisas grandes acontecerem, para podermos enfim levantarmos e dizer "Por Deus, que felicidade sinto!". E não é assim. Felicidade é o quebra-cabeça mais complexo que temos; quisera eu que todos nós conseguíssemos montá-lo!