sábado, 14 de novembro de 2020

Crônicas da Cidade Pandêmica: A síndrome do Somebody Save Me


Um ser humano, além de ser "um amontoado pequeno e miserável de segredos" (parafraseando Drácula), é antes de tudo um sonhador. Sim, mesmo o mais prático dos indivíduos tem dentro de si um sonho, nem que seja uma vida um pouco melhor do que a que tem no momento. Isso é perceptível em qualquer lugar, e não é a toa que as propagandas tem o poder que tem: o que são comerciais senão a venda de uma promessa associada a um produto? Se eu beber esta cachaça, eu posso talvez chegar nessa praia do comercial - ou pelo menos sentir um gosto igual aos que estão nessa praia. Realização por aproximação: eis a hubris e a tragédia humana. 

Um outro lugar que muitos se perdem são as ficções, as histórias que lhes são contadas. jogos, livros, revistas em quadrinhos, filmes; são estes os principais meios de escape da humanidade neste momento. Não importa, aqui, o quão simples seja uma história que está sendo contada, ou o quão implausível seja ela de acontecer no mundo real: tudo que se pede é que haja uma história que capture as mentes , e que nos faça esquecer do mundo cruel ao nosso redor. Com certeza a pandemia reforçou isso ainda mais: quer dizer que além dos problemas que já enfrentávamos (que eram grandes, não nos esqueçamos), vamos ter de encarar de frente uma pandemia mundial? Muito melhor tentar ignorar isso, seguir grudados na TV, nos jogos, viver uma vida imaginária. 

Às vezes, porém, as pessoas não ignoram tudo, mas simplesmente encaram de uma maneira , na melhor das hipóteses, equivocada. Elas buscam um salvador: uma pessoa que virá dos céus, e representará tudo que tem de bom. Quando este salvador chegar, todos o seguirão, e receberão lições de vida, e mudarão o mundo para melhor.... E antes eu estivesse falando de religião. Na verdade, é em quase qualquer coisa - embora apareça muito em questões políticas, principalmente nos dias de hoje. Quando isso não acontece, as pessoas se desanimam: Por que lutar sempre pelos avanços que nunca chegam, e quando chegam, são tomados à primeira oportunidade? É um pensamento válido, de certa forma, e não creio que podemos culpá-los por isso. 

Quando penso no primeiro caso, das pessoas em busca de um messias, me vem à mente um grupo mais jovem, e mais atrelado à figura de um super-herói, mais do que religião (embora essa também tenha um papel forte neste tipo de pensamento, apesar de ser atrelada mais fortemente á uma população mais velha). Isso porque, e é um fato muito difícil de admitir, uma grande parcela dos que curtem cultura nerd possuem uma cabeça absurdamente retrógrada, com muitos casos de fãs ameaçando de morte um criado de determinado trabalho só por ele ter ousado desviar do que eles entendem ser o rumo de um dado personagem. 

Essas pessoas, presas em uma eterna juventude mimada, não conseguem aceitar quando as coisas não seguem o seu entendimento, e podem até partir para atos violentos só para evitar desmoronar seu castelo de cartas pífio. E também são essas pessoas que, munidas da responsabilidade de escolher um representante político, preferem pensar com esta cabeça infantil e escolher quem mais se aproxima de seus sonhos de areia. 

Não entendem, esses falsos nerds, que é nas próprias obras que são fãs que está a rechaçada final de suas ideias: pois o que são super-heróis senão representações de virtudes? Figuras arquétipicas do que é certo e justo? A salvação do mundo nunca esteve em seus atos, mas sim em seus exemplos. Quando lemos os quadrinhos, por um breve momento, somos testemunhas de atos de bravura e bondade, e o objetivo final seria a iluminação do leitor, para que ele sim, saia da leitura e mude seu próprio mundo. Não que o leitor ou leitora espere uma espécie de Super Homem ou uma Mulher Maravilha chegar e arrebatá-lo aos céus; que ele/ela seja seu próprio exemplo. Que sejam a mudança. 

Se queremos que o amor vença, no fim de tudo, é preciso despertar de nossos sonos pesados e perceber os grilhões que nos prendem ao chão. No caso dos meus caros amigos nerds, com quem me identifico e sou extremamente solidário, o truque está em acreditar em si mesmo, e lembrar dos ensinamentos antigos das hqs: A direção de nosso futuro não está para trás, mas sim para o alto, e avante. 



Um comentário:

  1. Muitas vezes seguir os falsos messias (sejam representamtes, religiosos, personagens ou ideias) é o caminho mais rápido - e por isso mais perigoso - para se tentar alcançar um ideal.
    Excelente reflexão.

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