terça-feira, 20 de julho de 2021

Crônicas do Novo Normal: Uma Viagem


Anos atrás, eu e meu avô viajamos de ônibus de Belém para o Rio de Janeiro, e depois de volta para Belém. Esta viagem duraria 3 dias, como creio que ainda seja o caso, se alguém se aventurar a fazer isso logo que a pandemia acalmar. Não viajamos de avião, creio, porque o preço da passagem era bem mais caro que o de ônibus, e meus pais não deveriam ter dinheiro para algo assim. Ademais, naqueles tempos pré governo Lula, era um luxo indescritível viajar de avião, não algo comum como ainda é hoje, apesar de tudo. Nós aqui de baixo da sociedade, cá nos mantínhamos, e seguíamos incólumes e apertados em ônibus pelas estradas destruídas do Brasil. 

A viagem era longa, por certo; e era preciso matar o tempo de alguma forma. Hoje em dia os ônibus tem tvs e coisas assim, mas naqueles dias não havia nada, a não ser a janela e a poeira da estrada para distrair. Meu avô levava um mp3 player (coisa de antigamente, o leitor mais novo provavelmente nem sabe o que é), ouvindo suas músicas. Levava também uma bíblia e algum livro desses que se compra em lojas católicas, ensinando um pouco de catecismo aos fieis. 

Eu também levava um livro, em cada uma das viagens: na ida, eu li "O Poderoso Chefão", de Mario Puzo. Na volta, li "Perdidos na Noite", livro no qual basearam o filme com Dustin Hoffman e Jon Voight. Eu acho que tinha 11 ou 12 anos naquela época, e portanto talvez os livros fossem impróprios para mim. Mas nunca esqueci da viagem por causa deles; até hoje, quando fecho os olhos , consigo lembrar da poeira da estrada, o calor  febril que vinha da janela fechada (pois o busão tinha ar-condicionado: pelo menos um luxo podíamos ter), e as histórias intensas que saíam daquelas páginas. Um dos livros, inclusive, foi comprado durante a viagem, de um homem que vendia vários livros usados em cima de uma toalha, na beira da estrada: mais associado com viagem, impossível!

Pensei nisso esses dias, e não sei dizer o porquê. Talvez seja pelo fato de estarmos isolados em casa, sem poder sair, e meu cérebro sempre associou a liberdade de viajar com esta experiência singular, portanto me fazendo lembrar disso para fugir um pouco da realidade. Talvez porque sinta falta de meu avô: vão contar agora mais de 3, 4 anos que eu não converso com ele, é um homem avesso aos whatsapps da vida, prefere conversar ao vivo e eu não posso ir em Belém do Pará agora, obviamente. Talvez, ainda, seja uma forma da minha mente simbolizar que o que mais quer é pegar a estrada assim que acabar tudo isso.

Não sei: Tudo que sei é que, ainda ontem, sonhei com esta viagem: no sonho, lá fora, não vinha mais um calor como antes, mas chovia muito e sem parar. "Chuva que Deus manda", eu pensei no sonho, e continuei a ler o livro  em minhas mãos com toda a paz que podia. 

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