terça-feira, 27 de outubro de 2020

Crônicas da Cidade Pandêmica: 157 mil pedras no lago



Stephen Jay Gould, um paleontólogo famoso, disse certa vez que se importava menos com o peso e as características específicas do cérebro de Einstein, do que na certeza quase absoluta que pessoa com igual talento nasceram e morreram trabalhando em campos de algodão e fabricando bolsas baratas para consumo nocivo. Eis uma frase que nos faz pensar: a perda de talentos e potenciais para coisas menores, graças à arrogância da humanidade em acreditar mais em um valor imaginário que em um bem real.

Mas eu pensei nisso muito esses dias, não por estar lendo qualquer coisa sobre Einstein ou sobre Gould, mas sim porque me peguei pensando sobre as perdas de vida que aconteceram esses tristes  dias de Covid-19. Mais de 157 mil pessoas. O impacto disso no mundo, nas vidas. A morte de uma pessoa, dizem, é como uma pedra num lago, sendo jogada e causando ondas em seu arremesso, energias de sofrimento sem fim. A morte de 157 mil pessoas, então, seria como um caminhão de pedras, arremessados todos os dias em um lago, até ele transbordar, soterrar, e sumir, morrer. 

Fico pensando, à noite, em que tipo de mundo virá quando isso tudo acabar. Não a economia, quem se importa com ela? Essas coisas vem e vão, direto, sem parar, ainda mais num país tão sem equilíbrio quanto o nosso. As pessoas porém. elas nunca voltam; apesar do que as religiões nos mostram (mesmo as que acreditam em reencarnação), a mesma pessoa nunca volta. 157 mil histórias perdidas no tempo da praga, soterradas pelo riso e escárnio de quem nem sequer se importa. 

Este é o país que virá, uma grande necrópolis. um grande vazio a ser preenchido. e eu não creio, não consigo crer, que o que virá preencher isso vá ser melhor do que tinhamos antes deste ano terrível de 2020. Eis o meu brinde (antecipado) para 2021: se não pudermos ser melhores, que sejamos ao menos, não-piores. 


sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Crônicas da Cidade Pandêmica: up is down, left is right.


Esses dias, o grande Casagrande (sem trocadilhos), citou o igualmente fabuloso Milton Nascimento, e falou da situação de jogador do Santos, um grandessíssimo covarde e sem caráter que escapou de sua condenação na Itália por estuprar uma moça albanesa. Esse senhor, comportando-se como um grande criminoso, evadiu-se da justiça e aqui está, no brasil, usufruindo de sua riqueza e dizendo-se inocente. E também, diga-se, amplamente abraçado pela sociedade que gosta de futebol. Não se pode julgar assim do naa, eles dizem. Há que se ver todos os ângulos, eles dizem, ignorando que este mesmo jogador já foi condenado em primeira instância, algo que parecia dizer muito mais a eles quando se aplicava a prender quem eles queriam preso. 

Quando digo eles, eu infelizmente quero dizer a grande maioria da sociedade brasileira - ou ao menos a parte que fala mais alto. E não me refiro apenas a futebol, embora se eu fosse fazer isso haveria uma série de pessoas que tiveram sua conduta lamentável perdoada simplesmente porque sabiam chutar a porcaria de uma bola (digamos que este jogador em questão não é o único calhorda que saiu do Santos). Não, o fato é que Casagrande estava certo, quando falou que a sociedade parece estar perdoando bastante comportamentos execráveis, normalizando mesmo estes. Isso, num país que nunca foi realmente um exemplo de  tolerância e virtudes. 

Cada vez mais, estamos abraçando a infâmia; o resultado disso vê-se nos líderes que escolhemos, nas atitudes que tomamos. Que espécie de pessoa ia escolher rir de violência e sofrimento humano nas telas da TV? Que ser humano ia sentir-se confortável culpando a vítima por seu infortúnio? Ah, mas também, andando naquela rua.... Ah, mas olha a roupa que ela usava.... Sempre a culpa é do sofredor, nunca de quem lhe causa sofrimento. Talvez o medo nos faça assim; afinal, é mais fácil entender que o outro caiu em tormento por sua própria falta de cuidado, assim eu posso tomar o cuidado que ele não tomou, e sobreviver. Buscamos a razão em meio do caos, e quando não conseguimos, abraçamos essa violência como nossa, e quem não concorda é o fraco, o pária. 

E no entanto, acho que é possível mesmo ver uma melhora dentro da piora, por incrível que pareça. Pois mesmo estes casos mais absurdos, como o do jogador estuprador, nos parecem horríveis e escabrosos porque estamos mais de olho, e porque nos vemos demandados a encarar este horror - coisa que e garanto que nunca aconteceria 10, 15 anos atrás. Porque a naturalização do horror era tão natural naquela época, que nem sentíamos, simplesmente praticávamos e seguíamos em frente. E agora, podemos ver sem as vendas que pusemos em nós mesmos, ou pelo menos alguns de nós podem. Que estes virem a norma, e não a exceção. 


segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Crônicas da Cidade Pandêmica: Reflexão X



Sou um nerd velho. Não um geek: isso é termo de quem tem vergonha do que é na verdade. Um nerd. 

Esse termo, nos últimos anos, tem sido carregado de sentidos ainda mais pejorativos do que era na minha época jovem. Antigamente, você ser um nerd implicava em bullying, em rejeição pela sociedade geral, em zer zombado por meia escola. Nunca esqueci quando fui motivo de chacota, ainda na sétima série (o que hoje em dia equivale ao oitavo ano), porque estava fascinado com o anime Dragonball Z. "Você tá sendo ridículo", meus colegas disseram, e riram na frente da sala. Tenho 32 anos hoje, e a memória disso ainda é clara. Hoje em dia, acredito que as feridas do passado são as mais fundas, porque nunca são curadas direito. 

Mas eu cresci, e tal como é dito no livro de Coríntios, deixei para trás as atitudes próprias de criança. Contudo, nunca mudei meu espírito empolgado com as coisas nerds: filmes, jogos, quadrinhos. Esse último, na verdade, sempre teve e , acredito, sempre terá um espaço especial em meu coração, pois as lembranças de ler uma revista (no papel jornal da editora Abril) enquanto a chuva caía lá fora, na minha terra natal, é algo que terei como um tesouro mental pelo resto de minha vida. 

Quando falamos de quadrinhos, sempre temos um personagem favorito. os mais jovens, tendem a gostar dos heróis que apareceram nos filmes mais recentes: Capitão América, Hulk, Homem-Aranha. Quanto a mim, também tenho alguns favoritos, mesmo entre esses que citei acima; mas confesso que desde muito cedo, me identifiquei com o grupo de mutantes favorito da Marvel, os X-men. 

Por que? Eis uma pergunta que me parecia difícil de entender antes. Com certeza a animação dos anos 90 ajudou bastante; Afinal, era a atração principal na Tv Colosso, o programa de desenhos da TV Globo. Também a assinatura de revistas que meus pais fizeram para mim (que deus os abençoe por essa escolha!) foram fundamentais para essa preferência, afinal, o pacote tinha as revistas do Hulk, e dos X-men como partes integrantes. 

Mas eu creio que sempre houve, também, um fator que talvez eu nem sequer suspeitasse antes, algo profundo e forte em meu coração: eu era um isolado. Os X-men não são heróis comuns: são um grupo rejeitado pela grande sociedade, e ainda assim tentando seguir sua vida, e até mesmo fazer o bem. os rejeitados do mundo sempre se encontram e , de alguma forma, se unem numa carapaça para protegerem-se das dores da sociedade comum. nesse sentido, X-men foi (e talvez ainda seja) a representação dos malditos nos quadrinhos, dos escurraçados. 

E também tinha um personagem que era líder e usava óculos. Isso era fundamental. A mim, meus x-men! 



quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Crônicas da Cidade pandêmica: September of my Years


 A mente é uma coisa curiosa, e o coração humano algo mais misterioso ainda. Pois não me parece nem dois, três meses que eu estava morando na casa de meus pais, e ouvindo resignado os bregas de meu velho vizinho Zilomar, quando na verdade já fazem bem quase 6 anos desde que me mudei para São Paulo, começar uma vida nova (ou talvez, ver uma vida nova ME começar). Seis anos como neo-paulista! Talvez nesse meio tempo, já me tenham surgido os filtros de nariz necessários para respirar a poluição daqui. 

Falei de mente porque queria ilustrar como nossas lembranças são facilmente distorcidas (e nestes tempos de quarentena, elas são bastante!), e falei de coração porque hoje me vejo num momento curioso: o de ser eu o vizinho do brega. Ocorre que eu, desde muito cedo, não consigo me lembrar de nenhum fim de semana da época que eu morava na casa de meus pais, que este meu vizinho não tocasse bregas clássicos em seu som, com a felicidade dos nostálgicos. E naquela época, eu era um adolescente, então é claro que eu não queria ter nada a ver com aquelas músicas... e por isso, eu ficava um pouco ressabiado de ter de ouvir as músicas de meu velho vizinho. Você sabe, a eterna posição do jovem contra o mundo.

No entanto, quando me mudei para São Paulo ( e lá se vão quase 6 anos, como eu disse!) eu confesso também que senti falta dessas músicas. Veja, meu pai e minha mãe sempre ouviram músicas mais clássicas, e mesmo algumas internacionais, e eu estaria mentindo se não dissesse que eles formaram boa parte do meu gosto musical. Contudo, seu Zilomar, com seus bregas intermitentes todo fim de semana, foi também ele um grande influenciador das canções que tocam em minha mente; de sorte que me vi forçado a repetir o ritual que ele mesmo, sem saber, me ensinou. E todo fim de semana desde então, eu toco os bregas paraenses, e bregas brasileiros dos anos 60, 70, 80. 

Uma dessas canções mais "cafonas" como alguns diriam (ou nem tanto, a bem da verdade), é justamente Manhãs de Setembro, da grande Vanusa, atualmente convalescendo mas em recuperação, pelo que ouvi dizer. O ritual ali, era certo: Seu Zilomar tocava essa música todo começo de setembro. A princípio, foi engraçado, mas com o passar dos anos, tornou-se algo que até me chateava: "De novo essa música! Ele não tem outra não?"

Amigo leitor, eis-me aqui, pagador de pecados, tocando todo mês de Setembro a música de Vanusa. Porque o que antes me chateava, aborrecia, virou o tempero das lembranças: não importa se é Setembro, Outubro , Novembro. Essa música, como tantas outras, é parte do meu passado, e quando a ouço, não sou mais um homem de 32 anos, preocupado com o mundo, com as mortes que nos rodeiam, com a doença letal que um idiota no poder nem se preocupa a respeito: sou novamente, um menino paraense, que vai tomar café da manhã e ler quadrinhos, que quer sair, quer falar, que quer ensinar o vizinho a cantar. E creio que assim será por anos, e um dia, quem sabe, além de influenciar meus filhos que virão, não terei eu tocado sem saber o coração de um jovem vizinho, tal qual seu Zilomar tocou o meu. 


domingo, 11 de outubro de 2020

Crônicas da Cidade Pandêmica: Finis Homo Ignoramus



A notícia veio amargar o dia: uma loja abriu em minha cidade natal, Belém do Pará, e as pessoas lotaram tudo. Simplesmente se acumularam, acotovelaram-se para entrar e... gastar dinheiro. Esse era o objetivo final, pois não? Entrar e endividarem-se, com o dinheiro que não tinham, posto que a quarentena deve ter afetado o seu poder monetário. Não era nem a vacina tão esperada, nem uma distribuição de algo que fosse beneficiá-los. Simplesmente, era a oportunidade de comprarem algo e fazerem papel de idiotas, em rede local e nacional. 

Essa postura não é rara nesses dias, infelizmente. Cansei eu mesmo de escrever aqui sobre as festas que as pessoas faziam no auge da pandemia (festas estas que pararam por hora; não por um policiamento mais efetivo, mas sim porque os frequentadores começaram a adoecer). No Rio de Janeiro, São Paulo, Capitias em geral, as pessoas simplesmente buscam formas de escapar do acordado que era evitar sair a não ser que fosse absolutamente necessário, e criavam estratégias. A atriz Luana Piovanni mesmo, postou dicas para não usar a máscara e acabou ficando doente, e se recusando a ser julgada pela internet (tarde demais, eu diria). 

Essas são coisas que me fizeram, no começo dessa desventura que tem sido o ano de 2020, parar e refletir sobre o porquê destas pessoas fazerem isso. Não é possível, eu pensava, que elas estejam simplesmente indo contra o que se pede delas, só porque é o que a maioria espera deles. Não posso crer que este grupo de pessoas está agindo como um adolescente mimado: deve haver um motivo maior, uma causa, errada que fosse, para que eles sigam agindo como imbecis estratosféricos. 

Essa crença minha, ao que parece, mostrou-se tristemente errada, o que talvez diga que eu tenha mais esperança na humanidade do que pensava, já que achava que ela não seria mesquinha o suficiente para fazer algo errado por pura birra. E digo humanidade, porque são raríssimos os países onde não vemos grupos esperneando para usar uma simples máscara, para proteção de si e do outro. Nos EUA, a coisa chegou a tal ponto que mesmo o sequestro de uma governadora estava planejado, tendo como pano de fundo a postura mais dura que ela teve em relação a estes furadores de quarentena. 

E com tudo isso, a esperança que se tinha de uma mudança profunda nas pesoas, após a pandemia, me parece algo tão tolo que nem vale a pena considerar mais. Eu creio, agora, que as pessoas vão seguir sendo, possivelmente, o pior que podem. E não por malícia, como eu pensava anteriormente. O que ocorre de errado no mundo é o resultado da total estupidez humana, que se vê encaixada hoje como uma opinião a ser respeitada, e que portanto fazem coisas odiosas e idiotas como estas que citei. Então, se queremos mudar o mundo para a geração futura, que tenhamos a força de coibir com toda a força a estupidez dessa corja no poder que nos assola, porque senão tudo vai virar pó. 


domingo, 4 de outubro de 2020

Crônicas da Cidade Pandêmica: Raimundo, Tibúrcio, Monteiro



"Parado a meses aqui. Não posso sair de casa, não com essa doença rondando. Ademais, a escola está completamente parada, o governador mandou manter assim. às vezes passo de carro bem pela frente, e olho a velha construção, em frente à praça velha, árvores emoldurando sua entrada. Agora o mato também está emoldurando tudo: não consigo nem ver direito o caminho de pedras que leva ao corredor central da escola. Quando as coisas voltarem ao normal, espero que o capinador tenha um cuidado especial ali. 

Sem nada para fazer em casa (o governo prometeu aula online e esqueceu de combinar com a tecnologia que não temos, então nada aconteceu), penso nos meus alunos - Seu Baltazar,   Seu Sandoval, Dona Bela, dona Cândida....Penso no que andam fazendo. A vida, caro leitor, é bruta com todos, mas sempre me pareceu que com os que buscam educação mais tarde, ela é ainda zombeteira. E assim os EJA sofrem mais ainda nessa coisa toda, e eu me sinto incapaz de fazer qualquer coisa. Me sinto inútil. Então sigo para meu quarto e rezo pelas suas seguranças, e pelas suas almas." R. 

"Olá Classe! Hoje vamos falar de... oi? Tem alguém me ouvindo? Tá funcionando meu microfone? Hoje nós vamos falar de Formas geométricas.... Tá todo mundo ouvindo? Oi?  Às vezes eu me sinto um personagem desses de filme preto e branco mudo, só mexendo a boca e ninguém ouve.... Ah, ISSO vocês ouviram né?" T

"Como tão as coisas? Quer saber como tão as coisas? Porra, olha pra mim aqui cara, tô com a cara que parece um panda de tanta olheira, porque eu tenho que organizar essa bosta de computador todo dia, pra poder dar aula pros alunos que tão a distância. Ah, e não tô fazendo isso em casa não: Tenho que ir pra porra da escola, NO MEIO DE UMA PANDEMIA, pra dar aula pros alunos que eu tenho que vão lá ter aula, porque o bonitinho dono da escola achou que podia oferecer aula à distância e presencial ao mesmo tempo. Sabe quantos vem? 3. De 30. E os outros 27 pegam uma aula merda porque eu não tenho como me preparar pra dois tipos de aula completamente diferentes, sem que elas sofram em alguma coisa né? E tu achas que a escola me deu laptop? Tá bom, parece até que tu não mora no brasil mais, rapaz! Tudo isso, pra ouvir político chamando a gente de bosta, de preguiçoso. Olha, profissão vocação é o...." M.